quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Reciclando a alma




As árvores pareciam balançar pontualmente, como se isso fizesse parte do pacote. No meio do lago artificial, os peixes faziam sua dança harmônica, certos de que receberiam comida para que parecessem alegres e saudáveis. Mas ela não se deixaria levar pelo ambiente, não, jamais faria isso, Júlia sabia que eles estavam escondidos em algum lugar, prontos para pegá-la.
___ Júlia, está segura aqui, ninguém fará mal a você. Acredite!
___ Não posso acreditar em você. Você é uma deles, é... é sim, me deixaram passar frio, fiquei com muito frio. __ com um olhar vazio observou o ambiente __ Eu fiquei trancada no quartinho, mas você, sua vaca, você tem conforto! __ gritou.
___ Agredir-me não é a solução. Você sabe por que está aqui?
___ Eu não vou falar nada para você. __ respondeu __ Nada! __ gritou __ Quero sair daqui! __ Júlia começou a dar socos na parede __ Socorro! __ continuou gritando.
Imediatamente dois enfermeiros entraram, agarraram-na e aplicaram um forte sedativo nela.
___ Por favor, me liberte... __ disse com voz sumida.
Ela seria libertada, mas no tempo certo.
Quando finalmente acordou, a noite havia caído do lado de fora. Não sabia que horas eram, tiraram-lhe o relógio de pulso. Saiu da cama com dificuldade, experimentou a porta, mas ela estava trancada. Sua mente estava confusa, mas ainda havia um pouco de lucidez, o suficiente para ela decidir esperar, no dia seguinte sairia dali.
___ Bom dia. __ disse a enfermeira.
___ Quem é você?
___ Meu nome é Cláudia, eu sou a enfermeira que vai cuidar de você.
___ Como assim cuidar de mim? Eu já sou bem grandinha, não preciso de ninguém me bajulando! Onde estão minhas roupas? O que fizeram com elas? Eu quero sair daqui!
Cláudia presenciara reações agressivas como aquela antes, já não sentia pena das pacientes. As crises de abstinência poderiam ser fortíssimas.
___ Eu trouxe o seu café da manhã. __ disse a enfermeira.
___ Leve isso daqui, não estou com fome. __ falou Júlia, ainda com agressividade.
___ Se eu fosse você eu me alimentaria.
___ Está vendo esse corpinho aqui. __ levantou a bata que usava __ Já sou mãe de um filho de vinte anos. Nem parece, não é? Eu mantenho a minha forma, mas não é comendo essas porcarias que você trouxe.
Cláudia a olhou e o que viu foi um corpo devastado pelos excessos, a paciente estava macérrima, não deveria pesar mais do que cinquenta quilos, além disso, não aparentava os trinta e nove anos que tinha, parecia ser muito mais velha. Decidida a não se aborrecer, a enfermeira saiu, levando consigo a bandeja.
O tempo pode ser cruel quando não se tem nada o que fazer. Júlia caminhou quilômetros por seu quarto, que parecia ser um cubículo. Quando as pernas cansaram, ela arriou num canto e começou a chorar, suas mãos estavam trêmulas e suadas, as roupas estavam banhadas de suor, ela temia que as alucinações voltassem. Ali, acuada, se balançava o tempo todo, como se estivesse ninando a si mesma.
Raquel, a terapeuta, a encontrou dormindo, em posição fetal, no chão, e achou melhor não acordá-la, a sonolência era um dos sintomas da crise de abstinência de cocaína. Pediu para ser avisada quando a paciente acordasse.
Os gritos informaram a enfermeira Cláudia que Júlia não estava dormindo mais.
___ Doutora Raquel, essa é uma paciente daquelas. __ disse a funcionária.
___ Eu sei, Cláudia, mas fique tranquila, eu sei me cuidar.
A forma quase rude com a qual respondeu à enfermeira era porque não gostava que rotulassem as pacientes, elas estavam doentes, precisavam de cuidados, não de rostos fechados e distância.
Respirou fundo e pediu que destrancassem a porta.
___ Por favor, não grite. Isso só piora tudo.
___ Eu não quero ficar aqui.
___ Quer sair um pouco desse quarto?
___ Quero.
___ Mas vai ter que se acalmar.
Júlia fora internada a força...  Alguns pacientes não se convenciam de como estavam enfermos e do quanto isso os prejudicava e colocava em perigo suas próprias vidas.
___ Eu achei que iria morrer naquele quarto. Aquelas grades são tão fortes...
Raquel indicou um banco em determinado ponto do jardim e ali se sentaram.
___ Sabe onde está?
___ Em alguma clínica para malucos... eu acho.
___ Não, Júlia, aqui não é uma clínica para malucos. Aqui é uma clínica de reabilitação. Seu ex-marido a trouxe para cá. Você quase sofreu uma overdose de cocaína e de álcool.
___ Ah, mas o Danilo é muito desesperado, sempre foi assim. Eu estava bem, não precisava de nada disso.
___ Júlia, você acha mesmo que estava bem? Quando chegaram a sua casa, você estava caída no chão, havia garrafas de bebida espalhadas por todo lado, você estava desmaiada. Isso não é estar bem.
___ Eu fiz algumas besteiras, mas tive os meus motivos. __ devaneou.
A terapeuta tinha experiência, já ouvira as mais diversas explicações para justificar o uso das drogas, todos sempre têm um motivo muito sério para começar a usá-las.
A paciente ficou em silêncio, parecia não querer falar mais nada, pediu apenas para dar uma volta no jardim, a tarde estava ensolarada.
“Há quanto tempo eu não via o pôr do sol.” Pensou Júlia.
 Mas suas pernas cederam, ela não havia se alimentado desde o dia anterior e recusara o café da manhã, estava fraca demais. Raquel pediu que trouxessem uma cadeira de rodas e a levou de volta ao quarto.
O jantar de Júlia foi servido, mas mal conseguiu comer. Outra onda de tremores se apoderou dela, o estômago há muito que não via uma alimentação regular, vomitou tudo.
Aos poucos iria se recuperar, muito dependia de sua própria vontade, do quanto ela estava disposta a se livrar do vício.
Raquel acompanhava atentamente os pequenos progressos de Júlia, aos poucos conseguiu que ela se interessasse em participar das atividades da clínica, como a oficina de artes, praticava algumas atividades físicas e as rodas de leitura, mas ainda se recusava a participar da terapia de grupo.
___ Eu acho uma tremenda perda de tempo! As pessoas sentam lá e ficam falando, falando... eu não quero ir.
Ela tinha hora marcada com Raquel todos os dias, nessa fase inicial do tratamento, era norma da clínica que os pacientes fossem intensamente acolhidos.
___ Como se sente hoje?
___ Todos os dias você me pergunta a mesma coisa.
___ Combinamos que deixaríamos essa raiva de lado. Júlia, essa é uma conversa amigável. Você sabe que eu quero te ajudar.
___ Foi com essa raiva que eu consegui sobreviver.__ respondeu na defensiva.
___ Acha mesmo que estava sobrevivendo? Não seria justamente o contrário? Do jeito que estava indo mais parecia que queria se matar.
___ Absolutamente, eu sempre me cuidei.
___ Tudo bem, Júlia... __ Raquel tentaria outra abordagem __ Você não respondeu a minha pergunta sobre como se sente.
___ Irritada, com raiva, sei lá... tem dias que eu acordo me sentindo muito bem, mas tem outros que eu me sinto horrível.
___ Júlia, essas mudanças de humor vão passar, é uma fase. Faz parte do processo, da sua reabilitação.
___ Reabilitação?! Francamente, Raquel, isso é uma palhaçada! Eu não preciso ficar trancada aqui, posso parar de beber e cheirar a hora que eu quiser. __ a fúria estava de volta nos olhos de Júlia.
___ Não! Você não pode! O vício é um caminho sem volta!
A terapeuta se surpreendeu com a própria ênfase. Não queria parecer áspera, mas não conseguiu se controlar. Júlia começou a chorar.
___ A minha vida de antes era uma porcaria. Eu estava tão cansada... tão perdida... __ os soluços a impediram de continuar falando.
“A armadura dela está começando a se quebrar, a hora é essa!” __ pensou Raquel.
___ Por que considerava sua vida ruim?
___ Ah, eu não sei te dizer assim. Tanta coisa...
Como a paciente fora internada por seu próprio ex-marido, Raquel achou melhor começar por ali.
___ Por que não me conta sobre o seu casamento?
___ Ah, foi maravilhoso... Quando conheci o Danilo, eu tinha acabado de terminar o ensino médio... naquela época eu pensava em viajar, queria conhecer a Itália, passaria um ano lá. Meus avós por parte de pai eram italianos. Eu sei falar italiano, sabia?
Raquel sorriu.
___ Depois desse ano sabático, __ continuou __ eu voltaria e pensaria numa carreira. Mas quando olhei para o Danilo, eu me apaixonei, enlouqueci, pensava nele dia e noite... ele parecia tão seguro... era forte como uma rocha. Incrível como alguns homens mexem com a gente. Tinha acabado de se formar em engenharia, o pai era engenheiro também...
O semblante dela mudou enquanto falava... parecia... feliz. Embalada pelas lembranças se tornou eloquente, com olhos vivos.
O início do casamento não fora o divisor de águas na vida dela, não foi esse o gatilho para que ela começasse a se drogar.
___ Éramos loucos, loucos um pelo outro. Passávamos quase todas as noites juntos. Meu pai ficava louco de raiva, o dele também. Víamos o nascer do sol na praia, fazíamos amor na varanda do apartamento dele. Era tudo tão bom... tão bom... Acho que não foi muita surpresa quando nos casamos menos de um ano depois. Nosso casamento foi lindo, meu pai chorou quando me entregou no altar... Mas tudo isso passou, acabou, faz parte de uma vida que não existe mais.
A brusca interrupção deixou Raquel um pouco surpresa, ela achava que já havia ganhado a confiança de Júlia.
___ Podemos falar melhor sobre isso depois. ___ Raquel queria deixar claro que a conversa não terminaria ali.
___ Vou para a oficina de artes, estou aprendendo a pintar, mas acho que não tenho muito talento. __ riu.
___ Isso é o que vamos ver. Você só precisa se permitir, ainda é muito cedo para dizer uma coisa dessas.
“Ela não sabe, __ pensou Raquel __ mas a “arteterapia” pode ajuda-la a se reestruturar, a se reorganizar mentalmente. Inconscientemente, a Júlia vai entrar em contato com suas emoções. É bom que não saiba disso, porque do jeito que está agora, destrutiva, era capaz de não quere ir mais às aulas.”
Raquel preferia sempre conhecer primeiro o paciente, para depois ler a ficha deles, achava que isso a livraria de possíveis preconceitos. Pelo que averiguara, a vida de Júlia foi marcada por uma grave tragédia, há dezenove anos atrás os pais dela haviam morrido num acidente de carro.
“Talvez tenha sido essa perda que a tenha desequilibrado.” __ conjecturou.
As outras informações não eram muito animadoras: não tinha mais nenhum parente vivo, os responsáveis por ela eram apenas o ex-marido e o filho de vinte e um anos.
“Complicado isso. Como vai ser a vida dela quando sair daqui?”__ pensou Raquel.
Ela não sabia se felizmente ou infelizmente era bom não ter mais contato com os pacientes quando saíam da clínica.
“Assim eu sofro menos.”__ continuou pensando.
Mas bem no fundo do coração sabia que pensava neles do mesmo jeito.
A clínica permitia que as visitas fossem semanais, mas ninguém havia aparecido para a visita durante todo aquele primeiro mês.
“Nem o filho veio vê-la.” __ ficou penalizada.
Júlia continuava ostentando aquele ar de forte, fingia não se incomodar com o fato.
___ Você tem filhos, Raquel?
___ Tenho dois. São gêmeos, um rapaz e uma moça. __ Raquel estava encantada com a providência, queria mesmo perguntar sobre o filho de Júlia. __ Li na sua ficha que você tem m filho. __ falou sincera __ Já é um homem.
___ Verdade. __ respondeu __ O Caio tem vinte anos.
___ Lembro-me dos meus pequenininhos, eles eram muito fofinhos. __ instigou.
___ É o que todos acham, mas ninguém fala do trabalho que dá, do desgaste que é.
___ Realmente, não é uma tarefa fácil, bebês dão muito trabalho.
___ Olha Raquel, eu não estou bem hoje. Não quero ficar aqui conversando com você.
___ E o que você quer então?
___ Quero ir embora. Quero sair desse lugar, desse castigo!
___ Você sabe que não é assim que funciona. __ argumentou Raquel __ Você está aqui por um motivo, está aqui para se recuperar, você está doente.
___ Eu não estou doente! Eu não estou doente! Isso é um absurdo! __ disse Júlia alterada.
___ Júlia, você está aqui faz tempo, já foi às palestras, sabe que precisa se tratar.
___ Aqui, trancada, com esse monte de viciados... isso não é tratamento.
Ela saiu batendo a porta.
“O apoio da família é essencial nessas horas. Mas o que fazer se ninguém apareceu? O filho sequer respondeu aos recados que foram deixados.” __ Raquel estava triste com a situação.
Ela sabia que aquele seria um caso difícil, além de sofrer de fortes crises de abstinência, Júlia também estava sentindo o abandono.
Mais um mês se passou sem que o ex-marido ou o filho aparecessem na clínica. Júlia parecia estar aceitando melhor o tratamento, gostava das oficinas e não faltava às palestras e aos encontros de terapia de grupo. Mas infelizmente sua terapia individual parecia estagnada. Algo ainda estava muito encoberto pela dor e pelo sofrimento.
___ Raquel, __ chamou a recepcionista __ você pediu para ser avisada quando conseguíssemos falar com o filho daquela paciente, a Júlia Guimarães. Então, eu mesma falei com ele, disse que virá ainda essa semana, no dia da visita.
___ Muito obrigada, por ter me avisado. Ótimo trabalho.
          Ela optou por não contar a paciente sobre a possível vinda do filho. Poderia ser frustrante se ele não comparecesse.
          Com um metro e oitenta de altura, Caio era moreno como a mãe, com lindos olhos cor de mel e lábios finos.
          ___ Oi, meu nome é Caio Guimarães, eu vim ver a minha mãe. O nome dela é Júlia Guimarães. __ disse ele à recepcionista.
          ___ Eu vou avisar que está aqui. Peço que aguarde no jardim, é só seguir em frente e virar a esquerda no final do corredor.
          Júlia estava ansiosa, as mãos tremiam, mas dessa vez não era por vontade de beber ou de cheirar cocaína, era apenas ansiedade, veria o filho, estava com tanta saudade.
          Nos dias de visita era permitido que os pacientes vestissem roupas comuns, não eram obrigados a se vestir com as roupas da clínica. Quando fora internada, Danilo enviara uma mala com roupas e objetos pessoais, alguns foram retirados, como tesoura e barbeadores, mas outros permaneceram.
          Ela trajava um vestido azul de alças, ficava com aparência de mãe, Caio se sentiria comovido.
          Ela achou que o filho a abraçaria e diria que estava com saudade, mas o que ouviu foi bem diferente do que imaginava.
          ___ Oi. __ disse ele.
          ___ Oi. __ respondeu ela.
          ___ Aqui parece ser um bom lugar. __ disse Caio de cabeça baixa.
          ___ Ah, diz isso porque não está aqui dentro. __ Júlia sequer pensou no que dizia.
          ___ Eu não fiz nada para estar aqui. __ a voz de Caio saiu cortante.
          ___ Uau, você está bem malcriado! Não pode falar assim comigo, sou sua mãe!
          As vozes estavam alteradas, chamaram atenção de outros visitantes.
          ___ Acho que começamos mal. __ disse Júlia __ Vamos caminhar um pouco. Não precisa ser tão duro comigo. Eu te amo!
          ___ E quando começou a me amar? Ah, já sei, agora que perdeu os seus dois grandes amores, descobriu que tinha a mim! __ os olhos dele estavam cheios de lágrimas.
          ___ Filho, eu errei muito com você, mas agora vai ser diferente... __ começou ela.
          ___ Júlia, __ ele sempre a chamara assim __ eu vim aqui para te fazer uma pergunta, uma única pergunta: quando ser mãe deixou de ter graça para você?
          ___ Como é?
          ___ Isso mesmo, mãe. __ a última palavra saiu desdenhosa __ Achou melhor ser colchão de qualquer um, não foi?
          A resposta veio rápida como um raio, ela o esbofeteou.
          ___ Você não sabe nada da vida, moleque! Você não entende... __ Júlia perdeu a voz.
          ___ Não eu não entendo como alguém que tinha tudo, faz o que você fez. __ Caio falou isso enquanto se encaminhava para a saída.
          “Um passo para frente, dois passos para trás.” __ pensou Raquel desanimada.
          Júlia estava deprimida, não queria conversa. Mas com jeito, Raquel conseguiu que ela falasse.
          ___ Quando me casei já estava grávida do Caio. Fiquei felicíssima, minha família estaria completa. Minha mãe, Liana, me deu todo apoio. Íamos juntas comprar as roupinhas, cada coisinha tão linda... O Danilo também estava feliz... Eu tinha tudo...
          Por mais difícil que seja lembrar o passado, isso é muito importante em uma terapia, ainda mais na busca da reabilitação.
          ___ No primeiro mês de vida do meu filho, minha mãe praticamente se mudou para a minha casa, o Danilo achou bom, ele gostava muito da minha mãe... e... do meu pai também, claro.
          Não passou despercebida a hesitação de Júlia ao mencionar o pai.
          ___ E você, Júlia, como era a relação com o seu pai?
          ___ Eu amava o meu pai, se é isso o que quer saber. Só o achava um pouco difícil de lidar, ele tinha verdadeiro pavor de médicos, precisava fazer uma cirurgia de catarata, mas se recusou a operar. Ele enxergava muito pouco do olho esquerdo. Certo dia ele foi buscar a minha mãe, já era noite, falei para deixarem o carro e irem de táxi, meu pai não gostava de dormir fora, não adiantaria convidá-los para ficar lá em casa, mas ele não quis, disse apenas que ligaria quando chegassem. Uma hora depois ele ainda não havia ligado, fiquei preocupada, liguei para minha mãe, mas o telefone estava fora de área. O Danilo já tinha chegado e começamos a ligar para os hospitais. Umas três horas depois, um policial ligou dizendo que eles haviam sofrido um acidente... estavam... estavam mortos. Aparentemente, disseram, meu pai havia perdido o controle do carro em uma curva e bateu de frente num poste, morreram no local.
          ___ Eu sinto muito. __ Raquel estava comovida __ Deve ter sido difícil para você.
          ___ Foi. De repente eu me vi sozinha e com um bebê para cuidar... Fiquei desesperada... perdida... O Danilo trabalhava tanto... me deixava horas sozinha com a criança. Ele... ele chorava muito, eu não sabia o que fazer... ele teve tudo o que você possa imaginar, desde cólicas a candidíase cutânea. Eu precisava de um tempo, estava cansada... dormia mal...
          ___ Nunca pensou que ser mãe não é fácil, que exige sacrifícios?          Júlia não respondeu, mas Raquel era esperta, não deixaria de insistir.
          ___ Contava com a ajuda de sua mãe, como não podia contar com ela... __ Raquel deixou no ar a insinuação.
          ___ Eu tentei... mas minha vida se resumia a cuidar da casa... do bebê... esperar o Danilo...
          Raquel não queria julgar, mas era quase impossível não fazer isso. Júlia fora extremamente egoísta, queria o sonho, mas não a responsabilidade, tudo para ela não passara de uma grande brincadeira.
       ___ Foi nessa época que você começou a se drogar?
       ___ Não. __ Júlia suspirou longamente __ Tive uma crise nervosa, chorei o dia inteiro e quando o Danilo chegou, o Caio estava gritando, a fralda estava suja e eu não havia colocado ele para mamar. Ele ficou muito preocupado comigo e me levou ao médico. Fui encaminhada para a psiquiatria... disseram que eu estava com depressão pós parto. A medicação era forte, eu passava horas dormindo... __ novo suspiro __ O Danilo achou que seria bom para o Caio ir para uma creche, ele estava com oito meses... acho que a partir daí tudo piorou, eu não tinha nada para fazer, ficava andando de um lado para o outro pela casa, a hora parecia não passar nunca... Não sei exatamente quando foi que eu olhei para o bar, mas não me pareceu nada demais tomar um gole. Eu já não tomava mais os remédios, parei conta própria e ninguém percebeu... achei que não havia perigo. É um perigo quando achamos que não há perigo. __ filosofou Júlia.
       ___ E?__ incentivou Raquel.
       ___ E que eu bebia uns drinques quando estava sozinha, me ajudavam a manter a calma. Passei a fazer as coisas em casa, quando o Danilo chegava eu disfarçava. Ficamos assim por um ano ou dois. Mas começamos a nos desentender, ele percebeu que as bebidas estavam sumindo, eu estava muito irritada, não tinha desejo, não tinha vontade de sair, ir para a pracinha, ao cinema, ou qualquer porcaria infantil que ele inventasse. Acho que no final eu comecei a beber quando ele dormia, era engraçado, ele acordava e eu estava indo para a cama. Nos separamos quando o Caio estava com quatro anos, acertamos que a guarda do garoto ficaria com ele, eu receberia uma pensão e ficaria na casa...  Só tivemos condições de comprar a casa porque eu tinha herdado um dinheiro dos meus pais quando eles faleceram. Foi nessa época,  __ continuou __ que eu comecei a sair... estava livre... sem filho... sem marido... estava solta.
       Júlia estava de costas para a janela, estava alheia a toda beleza daquela manhã, como estivera alheia de sua própria vida, refém de sua pseudoliberdade por anos.
       ___ A minha memória sofreu umas perdas. __ continuou __ Hoje eu olho para trás e não consigo lembrar de muitas coisas, de como tudo aconteceu ao certo. Entende?
       ___ Isso... isso é comum, depois do uso prolongado de um alcaloide, como a cocaína. __ lamentou Raquel.
       ___ São coisas que não passam nem na nossa cabeça quando vamos usar. __ Júlia abaixou os olhos cheios de lágrimas. Ela sabia o que tinha feito a si mesma.
       ___ E quando foi que você começou a usar cocaína?
       ___ Eu já te disse que não lembro, não lembro, tá! __ gritou.
       Raquel já sabia como lidar com os ataques de fúria da paciente.
       ___ Calma, Júlia, calma... fique tranquila.
       ___ Desculpa, Raquel, me perdoa. Eu fico nervosa...
       Quando finalmente se acalmou, Raquel pediu que ela continuasse falando, que falasse de tudo que viesse a memória.
       ___ Tudo bem, __ respirou fundo __ eu vou tentar. Quando eu comecei a cheirar pó, tinha muito medo de ir ao morro comprar a droga. Eu pagava a um rapaz para ir comprar para mim, mas isso é um serviço caro. Se eu quisesse um pó de trinta reais, tinha que dar a mesma quantia para ele. Isso é o que chamam de um por um. Mas teve um dia em que eu não tinha a mesma quantia para dar a ele. Implorei que fosse, disse que eu pagava depois, mas ele disse que não podia. Ofereci alguns objetos que tinha em casa, mas ele disse não. Fiquei desesperada, estava com muita fissura.
       Júlia ficou em silêncio, olhava o tempo todo para o chão. Raquel sabia que esse era um indício de vergonha, mas não poderia interromper o momento, a mulher que hoje se encontrava ali a sua frente já havia fugido por tempo demais de suas emoções e responsabilidades, deixaria que ficasse o quanto fosse necessário em silêncio.
       ___ Até que ele me disse uma coisa, __ ela recomeçou a falar __ disse que conhecia um homem que pagava... que pagava para mulheres terem relações com ele. Nem pensei duas vezes, perguntei se poderia me levar até lá. A casa do tal homem era simples, ele me disse o quanto costumava pagar e eu aceitei. Fomos para o quarto, tirei minha roupa e... e... senti medo do que estava prestes a fazer, mas varri todos os pensamentos da minha mente. Ah, seu eu pudesse voltar no tempo...
       Mas não podia, tanto Júlia como Raquel sabia que isso era impraticável. É muito digno se arrepender depois de ter praticado um mal, mas nem sempre há como apagar isso da nossa história.
       ___ Bom, vamos lá, vamos lá. __ continuou __ Ele pediu que primeiro eu fizesse sexo oral nele. Não imagina o nojo que eu senti. Quando estava excitado, subiu em mim e me penetrou com toda a força, tentei sair debaixo dele, me arrependi, mas não consegui. Quando achei que finalmente tinha terminado, ele me virou de costas e... __ Júlia ficou em silêncio.
       Raquel sentiu o estômago se revirar, mas tentou se acalmar.
       ___ Júlia, vou pegar um copo d’água para nós.
       ___ Eu agradeço.
       Refeitas do momento tenso, elas se olharam. Júlia lutou contra a vontade de fugir, contra a vontade de tomar um trago e não um copo de água. Queria desesperadamente ficar calma. Inspirou o ar até que seus pulmões estivessem lotados e continuou colocando para fora aquelas verdades que queria esquecer.
       ___ Ele me virou de costas __ falou pausadamente __ e me sodomizou. A impressão que eu tinha era de que o membro dele era feito de ferro, me rasgando como se fosse uma lâmina afiada. Eu acabei gritando, não aguentei. Acho que ele se assustou e parou. Pude finalmente respirar um pouco, mas aí ele recomeçou e só parou quando teve um orgasmo. Meu ânus doía tanto, minha vagina, meu corpo, tudo... Acabei perdendo o medo e subi o morro para comprar a coca. Cheirei ali mesmo, na rua. Cheirei tanto que achei que ia desmaiar, depois comprei uma garrafa de conhaque e fui para casa. Não tomei banho, não conseguia sair do chão, bebi a garrafa quase toda, vomitei e fiquei ali deitada no meu próprio vômito, sentindo o cheiro da miséria que eu mesma havia procurado.
       Raquel estava se esforçando para não deixar transparecer nenhuma emoção, ainda não era hora.
       ___ Depois, __ continuou Júlia __ jurei que só faria isso de novo quando eu estivesse sem dinheiro nenhum para comprar minha droga. Mas essas promessas são muito vãs... Fui me viciando mais e mais, o dinheiro nunca dava.
       ___ Então você começou a se prostituir regularmente? __ interrompeu Raquel.
       ___ Sim... sempre que... __ Júlia deixou o pensamento em suspenso.
       Após um longo silêncio, ela continuou:
       ___ Fissura, eu fico na maior fissura. Faço qualquer coisa para conseguir dar um teco.
       Na gíria popular, “dar um teco”, significava cheirar.
       ___ Mas pelo menos eu nunca roubei ninguém. __ ela estava convicta do que dizia __ Eu nunca prejudiquei ninguém para manter o meu vício.
       ___ Você realmente acha isso? Você não sente que toda a infância do seu filho foi roubada? Que você tirou de si mesma as chances de ter uma vida digna? __ Raquel parecia estar alterada, mas isso era um recurso para não deixar que Júlia entrasse em sua zona de conforto e sentisse novamente pena de si mesma.
       ___ Você está sendo muito dura comigo, eu não aguento. O Caio estava com o pai... ele... ele estava bem.
       ___ Bem? Quantas vezes você o viu nesses anos todos, Júlia? Quantas vezes você estava de cara limpa, sem cocaína ou sem álcool? __ Raquel parecia ser implacável.
       ___ Algumas... Houve uma fase da minha vida em que eu tive vida, me livrei das drogas, de tudo. Mas eu estava muito confusa, não conseguia entender o que era aquilo tudo...
       Raquel pretendia confrontar a paciente com aquela linha de raciocínio, mas acabou ficando confusa com essa fala.
       ___ Aquilo tudo?
       ___ Teve um cliente que... que foi violento comigo... de novo. Se prostituir não é fácil... eu fiquei com muito medo, entrei na paranoia de que algum dia um deles iria me matar... A casa onde eu moro tem dois quartos, o quarto do Caio estava cheio de caixas, roupas velhas, um monte de tralha, então eu resolvi esvaziar tudo para alugar. Veio uma moça mais ou menos da minha idade, era vendedora, não ficava muito em casa... pagava direitinho. O nome dela era Luana...
       De repente, Júlia se levantou e foi para a janela, olhou para fora.
       ___ Raquel... olha, eu... eu quero parar por hoje. Não é uma fuga, estou exausta.
       A terapeuta concordou, também estava cansada, fora uma seção cansativa.
          Fiz progresso!”__ Raquel estava exultante.
       Júlia entrara no consultório com um sorriso largo, parecia bastante animada.
       ___ Que bom! Posso saber que progresso foi esse?
       ___ Claro! Finalmente saí dos rabiscos e da mistura sem sentido das cores e pintei algo razoável. O professor ajudou.
       Júlia já apresentava outra aparência. Embora ainda estivesse muito magra, parecia menos infeliz. Alguns funcionários notaram mudanças também no comportamento da paciente, ela parecia bem menos agressiva mais afável.
       Ela usou todo o tempo da consulta para falar de sua vida na clínica, de como estava se sentindo, como já entendia a atitude do ex-marido. Sobre isso disse apenas:
       ___ Ele me salvou, eu estava me matando.
       ___ Fale sobre quando ficou limpa, sem drogas.
       ___ Como eu disse... __ suspirou __ Aluguei o quarto do meu filho para a Luana. Não queria que ela soubesse que eu cheirava, então acabei escondendo, mas ela acabou me vendo caída no banheiro e me ajudou, __ fez uma pausa acompanhada de um suspiro __ tirou minhas roupas, me lavou, secou meu cabelo... Ah, ela foi maravilhosa... Acabei na minha cama, com uma xícara de chá quentinho ao meu lado. Me abri com ela, falei do meu vício... dos meus problemas. Ela me escutou, mas não respondeu nada. Ela era assim, dificilmente você conseguia saber o que ela estava pensando.
       Raquel pensou em dizer algo, mas desistiu.
       ___ Tudo isso que eu estou passando aqui, a desintoxicação, eu também passei em casa, foi tão difícil... parecia que eu ia morrer. A Luana encontrou um grupo de apoio perto de casa e foi comigo à primeira reunião... Eu estava bem, me sentia segura... feliz... Estreitamos a nossa amizade e coisas começaram a acontecer comigo.
       Raquel viu o rosto de Júlia corar.
       ___ Ela era uma pessoa realmente iluminada... acho que foi ela que percebeu o meu interesse antes mesmo de mim... Ah, Raquel, acho que você não vai entender.
       ___ Por que você acha isso?
       ___ Porque você é toda certinha, ainda é casada, cuida dos seus filhos...
          A culpa ainda pesava muito em sua consciência.
       ___ Júlia, eu acho que todas as formas conscientes de amor e prazer são válidas.
       ___ Quando estávamos juntas, eu sentia que toda ela estava dentro de mim e me sentia dentro dela também. Beijar a Luana na boca, misturar nossa saliva, acariciar o corpo dela, ir para a cama juntas... parecia que tinha feito aquilo toda a minha vida.
          “É tão comum essa recriminação... Seria tão mais fácil se percebessem que a sexualidade não tem sexo...”
       ___ Acho que o Danilo percebeu alguma coisa... não tenho certeza. O fato é que ele passou a deixar o Caio ficar pelo menos duas tardes por semana comigo. Era uma festa quando a Luana estava, ela o adorava. Fui mais mãe vivendo ao lado de uma mulher, do que jamais consegui ser quando era casada.
       As hesitações de Júlia eram constantes, ela parecia temer falar sobre o que viria a seguir.
       ___ Eu tenho uma capacidade incrível de estragar tudo! Encontrei um amigo da antiga... quando ele tinha dinheiro íamos para casa dele e dividíamos um pó. O Zé disse que eu estava bem, falou que sentiu minha falta... resumindo, fomos para o apartamento dele, ouvimos umas músicas, ele me ofereceu uma cerveja e eu aceitei, depois vieram mais e eu não resisti quando ele disse que tinha um pó muito bom. A carreira era enorme, mas eu não me intimidei... fiquei muito louca... Quando cheguei a casa já era de madrugada, a Luana estava com os olhos inchados de tanto chorar... disse que havia me ligado várias vezes.
       “A compulsão pela droga é sorrateira, ela nunca some de verdade.” __ pensou Raquel.
       ___ Viciados fazem as mais diversas promessas... Eu prometi a ela tantas coisas que não cumpri... Depois dessa recaída, tive muitas outras. Ela passou a me procurar nos bares e nos lugares onde eu costumava dar um teco. Disse que estava cansada daquilo tudo, que iria embora se eu não voltasse para a terapia. Fiquei quase uma semana dentro de casa, sem aprontar... ela sempre me perdoava...
       “O perdão nunca é eterno...”__ devaneou Raquel.
       ___ Eu tinha um pó escondido no banheiro, peguei... quando ela chegou viu que eu tinha usado, mas não falou nada. Achei que tinha me dado bem, mas quando dormi, ela arrumou as malas e foi embora, no meio da noite. Fugiu!
       ___ E você não a procurou?
       ___ E como! Mas ela sumiu, simplesmente desapareceu. __ suspirou fundo __ Aprendi tanto com ela... não queria que fosse assim, queria que ela entendesse que eu estava lutando, que aquilo foi um ato de fraqueza.
       ___ Você se achou incompreendida?
       ___ Raquel, acredite em mim, eu estava tentando me livrar do vício.
       Para a terapeuta era fascinante a maneira como Júlia buscava o apoio das pessoas. Como ela queria que fechassem os olhos para os seus erros, que acreditassem nela, quando nem ela acreditava. Júlia também era viciada por sua autocomiseração.
       Uma batida forte na porta fez com que parasse de falar. Era a secretária avisando que Raquel estava sendo chamada. Pela aflição da moça, parecia ser urgente.
       Ela as seguiu, e por instantes pareceu ver a si mesma uns meses antes, quando havia chegado ali. A mulher a sua frente era mais jovem do que ela, mas trazia no corpo as marcas dos maus tratos que cometera a si mesma. A novata estava chorando, gritava, implorava que a soltassem. Já livre das crises de abstinência, Júlia sentiu calafrios de pensar no que ainda estaria por vir para aquela moça.
       Dias depois ela comunicou a Raquel que queria enviar uma carta para o filho e pediu sua ajuda para enviar.
          ___ Eu providenciarei para que sua carta seja enviada.
          Decidida, ela começou a escrever:
          “Caio, olho para o papel e fico sem saber por onde começar. Muitos diriam que o ideal é pelo começo, mas eu nem sei onde é o começo... quando exatamente eu me perdi de mim, de você, da adolescente que eu fui, da mulher que eu poderia ter sido... Mas sei que o fim foi aqui, nessa clínica, onde talvez seja o começo... talvez...
          Filho, entendo que você deve ter várias perguntas aí na sua cabeça que certamente exigem uma resposta, no entanto, fico pensando se o certo seria isso, falar sobre coisas que eu vivi no passado e que só me resta conviver com as limitações que elas me causam e causarão no presente. Sinceramente, eu não acho que seja bem por aí.
          Em contrapartida, sinto que estou segura para falar sobre esperança, sobre essa porta entreaberta que a vida deixou para mim... para nós...
Ainda há chance de sermos amigos, porque não sei se ainda me quer como mãe. Digo isso porque não sou tola, sei que fiz de tudo para que esse afastamento existisse e respeito suas decisões, respeito sua dor, respeito sua memória e não tentarei passar por cima dela.
Reflita sobre isso e depois tome uma decisão.
Amor meu, esteja eu onde estiver te levo no coração.
Um beijo,
                    Júlia.”
         
          ___ É um começo Júlia, não sei qual será a decisão dele, mas acho que você está agindo muito bem. Parabéns!
          ___ Obrigada, Raquel, obrigada. Eu sei que nunca estarei curada do meu vício, sei que sou inteiramente responsável por tudo o que eu fiz, mas aprendi, aqui na clínica, que posso me cuidar, me manter afastada de tudo o que me faz mal.
          Raquel se limitou a sorrir e abraçou carinhosamente Júlia.
          Como o futuro ainda está por ser escrito, jamais há um fim para uma história.
FIM