As árvores pareciam
balançar pontualmente, como se isso fizesse parte do pacote. No meio do lago
artificial, os peixes faziam sua dança harmônica, certos de que receberiam
comida para que parecessem alegres e saudáveis. Mas ela não se deixaria levar
pelo ambiente, não, jamais faria isso, Júlia sabia que eles estavam escondidos
em algum lugar, prontos para pegá-la.
___ Júlia, está segura
aqui, ninguém fará mal a você. Acredite!
___ Não posso acreditar em
você. Você é uma deles, é... é sim, me deixaram passar frio, fiquei com muito
frio. __ com um olhar vazio observou o ambiente __ Eu fiquei trancada no
quartinho, mas você, sua vaca, você tem conforto! __ gritou.
___ Agredir-me não é a
solução. Você sabe por que está aqui?
___ Eu não vou falar nada
para você. __ respondeu __ Nada! __ gritou __ Quero sair daqui! __ Júlia
começou a dar socos na parede __ Socorro! __ continuou gritando.
Imediatamente dois
enfermeiros entraram, agarraram-na e aplicaram um forte sedativo nela.
___ Por favor, me
liberte... __ disse com voz sumida.
Ela seria libertada, mas
no tempo certo.
Quando finalmente acordou,
a noite havia caído do lado de fora. Não sabia que horas eram, tiraram-lhe o
relógio de pulso. Saiu da cama com dificuldade, experimentou a porta, mas ela
estava trancada. Sua mente estava confusa, mas ainda havia um pouco de lucidez,
o suficiente para ela decidir esperar, no dia seguinte sairia dali.
___ Bom dia. __ disse a
enfermeira.
___ Quem é você?
___ Meu nome é Cláudia, eu
sou a enfermeira que vai cuidar de você.
___ Como assim cuidar de
mim? Eu já sou bem grandinha, não preciso de ninguém me bajulando! Onde estão
minhas roupas? O que fizeram com elas? Eu quero sair daqui!
Cláudia presenciara
reações agressivas como aquela antes, já não sentia pena das pacientes. As
crises de abstinência poderiam ser fortíssimas.
___ Eu trouxe o seu café
da manhã. __ disse a enfermeira.
___ Leve isso daqui, não
estou com fome. __ falou Júlia, ainda com agressividade.
___ Se eu fosse você eu me
alimentaria.
___ Está vendo esse
corpinho aqui. __ levantou a bata que usava __ Já sou mãe de um filho de vinte
anos. Nem parece, não é? Eu mantenho a minha forma, mas não é comendo essas
porcarias que você trouxe.
Cláudia a olhou e o que
viu foi um corpo devastado pelos excessos, a paciente estava macérrima, não
deveria pesar mais do que cinquenta quilos, além disso, não aparentava os
trinta e nove anos que tinha, parecia ser muito mais velha. Decidida a não se
aborrecer, a enfermeira saiu, levando consigo a bandeja.
O tempo pode ser cruel
quando não se tem nada o que fazer. Júlia caminhou quilômetros por seu quarto,
que parecia ser um cubículo. Quando as pernas cansaram, ela arriou num canto e
começou a chorar, suas mãos estavam trêmulas e suadas, as roupas estavam
banhadas de suor, ela temia que as alucinações voltassem. Ali, acuada, se
balançava o tempo todo, como se estivesse ninando a si mesma.
Raquel, a terapeuta, a
encontrou dormindo, em posição fetal, no chão, e achou melhor não acordá-la, a
sonolência era um dos sintomas da crise de abstinência de cocaína. Pediu para
ser avisada quando a paciente acordasse.
Os gritos informaram a
enfermeira Cláudia que Júlia não estava dormindo mais.
___ Doutora Raquel, essa é
uma paciente daquelas. __ disse a funcionária.
___ Eu sei, Cláudia, mas
fique tranquila, eu sei me cuidar.
A forma quase rude com a
qual respondeu à enfermeira era porque não gostava que rotulassem as pacientes,
elas estavam doentes, precisavam de cuidados, não de rostos fechados e
distância.
Respirou fundo e pediu que
destrancassem a porta.
___ Por favor, não grite.
Isso só piora tudo.
___ Eu não quero ficar
aqui.
___ Quer sair um pouco
desse quarto?
___ Quero.
___ Mas vai ter que se
acalmar.
Júlia fora internada a
força... Alguns pacientes não se convenciam
de como estavam enfermos e do quanto isso os prejudicava e colocava em perigo
suas próprias vidas.
___ Eu achei que iria
morrer naquele quarto. Aquelas grades são tão fortes...
Raquel indicou um banco em
determinado ponto do jardim e ali se sentaram.
___ Sabe onde está?
___ Em alguma clínica para
malucos... eu acho.
___ Não, Júlia, aqui não é
uma clínica para malucos. Aqui é uma clínica de reabilitação. Seu ex-marido a
trouxe para cá. Você quase sofreu uma overdose de cocaína e de álcool.
___ Ah, mas o Danilo é
muito desesperado, sempre foi assim. Eu estava bem, não precisava de nada
disso.
___ Júlia, você acha mesmo
que estava bem? Quando chegaram a sua casa, você estava caída no chão, havia
garrafas de bebida espalhadas por todo lado, você estava desmaiada. Isso não é
estar bem.
___ Eu fiz algumas
besteiras, mas tive os meus motivos. __ devaneou.
A terapeuta tinha
experiência, já ouvira as mais diversas explicações para justificar o uso das
drogas, todos sempre têm um motivo muito sério para começar a usá-las.
A paciente ficou em
silêncio, parecia não querer falar mais nada, pediu apenas para dar uma volta
no jardim, a tarde estava ensolarada.
“Há quanto tempo eu não
via o pôr do sol.” Pensou Júlia.
Mas suas pernas cederam, ela não havia se
alimentado desde o dia anterior e recusara o café da manhã, estava fraca
demais. Raquel pediu que trouxessem uma cadeira de rodas e a levou de volta ao
quarto.
O jantar de Júlia foi
servido, mas mal conseguiu comer. Outra onda de tremores se apoderou dela, o
estômago há muito que não via uma alimentação regular, vomitou tudo.
Aos poucos iria se
recuperar, muito dependia de sua própria vontade, do quanto ela estava disposta
a se livrar do vício.
Raquel acompanhava
atentamente os pequenos progressos de Júlia, aos poucos conseguiu que ela se
interessasse em participar das atividades da clínica, como a oficina de artes,
praticava algumas atividades físicas e as rodas de leitura, mas ainda se
recusava a participar da terapia de grupo.
___ Eu acho uma tremenda
perda de tempo! As pessoas sentam lá e ficam falando, falando... eu não quero
ir.
Ela tinha hora marcada com
Raquel todos os dias, nessa fase inicial do tratamento, era norma da clínica
que os pacientes fossem intensamente acolhidos.
___ Como se sente hoje?
___ Todos os dias você me
pergunta a mesma coisa.
___ Combinamos que
deixaríamos essa raiva de lado. Júlia, essa é uma conversa amigável. Você sabe
que eu quero te ajudar.
___ Foi com essa raiva que
eu consegui sobreviver.__ respondeu na defensiva.
___ Acha mesmo que estava
sobrevivendo? Não seria justamente o contrário? Do jeito que estava indo mais
parecia que queria se matar.
___ Absolutamente, eu
sempre me cuidei.
___ Tudo bem, Júlia... __
Raquel tentaria outra abordagem __ Você não respondeu a minha pergunta sobre
como se sente.
___ Irritada, com raiva,
sei lá... tem dias que eu acordo me sentindo muito bem, mas tem outros que eu
me sinto horrível.
___ Júlia, essas mudanças
de humor vão passar, é uma fase. Faz parte do processo, da sua reabilitação.
___ Reabilitação?!
Francamente, Raquel, isso é uma palhaçada! Eu não preciso ficar trancada aqui,
posso parar de beber e cheirar a hora que eu quiser. __ a fúria estava de volta
nos olhos de Júlia.
___ Não! Você não pode! O
vício é um caminho sem volta!
A terapeuta se surpreendeu
com a própria ênfase. Não queria parecer áspera, mas não conseguiu se
controlar. Júlia começou a chorar.
___ A minha vida de antes
era uma porcaria. Eu estava tão cansada... tão perdida... __ os soluços a impediram
de continuar falando.
“A armadura dela está
começando a se quebrar, a hora é essa!” __ pensou Raquel.
___ Por que considerava
sua vida ruim?
___ Ah, eu não sei te
dizer assim. Tanta coisa...
Como a paciente fora
internada por seu próprio ex-marido, Raquel achou melhor começar por ali.
___ Por que não me conta
sobre o seu casamento?
___ Ah, foi maravilhoso...
Quando conheci o Danilo, eu tinha acabado de terminar o ensino médio... naquela
época eu pensava em viajar, queria conhecer a Itália, passaria um ano lá. Meus
avós por parte de pai eram italianos. Eu sei falar italiano, sabia?
Raquel sorriu.
___ Depois desse ano
sabático, __ continuou __ eu voltaria e pensaria numa carreira. Mas quando olhei
para o Danilo, eu me apaixonei, enlouqueci, pensava nele dia e noite... ele
parecia tão seguro... era forte como uma rocha. Incrível como alguns homens
mexem com a gente. Tinha acabado de se formar em engenharia, o pai era
engenheiro também...
O semblante dela mudou
enquanto falava... parecia... feliz. Embalada pelas lembranças se tornou
eloquente, com olhos vivos.
O início do casamento não
fora o divisor de águas na vida dela, não foi esse o gatilho para que ela
começasse a se drogar.
___ Éramos loucos, loucos
um pelo outro. Passávamos quase todas as noites juntos. Meu pai ficava louco de
raiva, o dele também. Víamos o nascer do sol na praia, fazíamos amor na varanda
do apartamento dele. Era tudo tão bom... tão bom... Acho que não foi muita
surpresa quando nos casamos menos de um ano depois. Nosso casamento foi lindo,
meu pai chorou quando me entregou no altar... Mas tudo isso passou, acabou, faz
parte de uma vida que não existe mais.
A brusca interrupção
deixou Raquel um pouco surpresa, ela achava que já havia ganhado a confiança de
Júlia.
___ Podemos falar melhor
sobre isso depois. ___ Raquel queria deixar claro que a conversa não terminaria
ali.
___ Vou para a oficina de
artes, estou aprendendo a pintar, mas acho que não tenho muito talento. __ riu.
___ Isso é o que vamos
ver. Você só precisa se permitir, ainda é muito cedo para dizer uma coisa
dessas.
“Ela não sabe, __ pensou
Raquel __ mas a “arteterapia” pode ajuda-la a se reestruturar, a se reorganizar
mentalmente. Inconscientemente, a Júlia vai entrar em contato com suas emoções.
É bom que não saiba disso, porque do jeito que está agora, destrutiva, era
capaz de não quere ir mais às aulas.”
Raquel preferia sempre
conhecer primeiro o paciente, para depois ler a ficha deles, achava que isso a
livraria de possíveis preconceitos. Pelo que averiguara, a vida de Júlia foi
marcada por uma grave tragédia, há dezenove anos atrás os pais dela haviam
morrido num acidente de carro.
“Talvez tenha sido essa
perda que a tenha desequilibrado.” __ conjecturou.
As outras informações não
eram muito animadoras: não tinha mais nenhum parente vivo, os responsáveis por
ela eram apenas o ex-marido e o filho de vinte e um anos.
“Complicado isso. Como vai ser a vida dela quando
sair daqui?”__ pensou Raquel.
Ela não sabia se
felizmente ou infelizmente era bom não ter mais contato com os pacientes quando
saíam da clínica.
“Assim eu sofro menos.”__
continuou pensando.
Mas bem no fundo do
coração sabia que pensava neles do mesmo jeito.
A clínica permitia que as
visitas fossem semanais, mas ninguém havia aparecido para a visita durante todo
aquele primeiro mês.
“Nem o filho veio vê-la.”
__ ficou penalizada.
Júlia continuava
ostentando aquele ar de forte, fingia não se incomodar com o fato.
___ Você tem filhos,
Raquel?
___ Tenho dois. São
gêmeos, um rapaz e uma moça. __ Raquel estava encantada com a providência,
queria mesmo perguntar sobre o filho de Júlia. __ Li na sua ficha que você tem
m filho. __ falou sincera __ Já é um homem.
___ Verdade. __ respondeu
__ O Caio tem vinte anos.
___ Lembro-me dos meus
pequenininhos, eles eram muito fofinhos. __ instigou.
___ É o que todos acham,
mas ninguém fala do trabalho que dá, do desgaste que é.
___ Realmente, não é uma
tarefa fácil, bebês dão muito trabalho.
___ Olha Raquel, eu não
estou bem hoje. Não quero ficar aqui conversando com você.
___ E o que você quer
então?
___ Quero ir embora. Quero
sair desse lugar, desse castigo!
___ Você sabe que não é
assim que funciona. __ argumentou Raquel __ Você está aqui por um motivo, está
aqui para se recuperar, você está doente.
___ Eu não estou doente!
Eu não estou doente! Isso é um absurdo! __ disse Júlia alterada.
___ Júlia, você está aqui
faz tempo, já foi às palestras, sabe que precisa se tratar.
___ Aqui, trancada, com
esse monte de viciados... isso não é tratamento.
Ela saiu batendo a porta.
“O apoio da família é
essencial nessas horas. Mas o que fazer se ninguém apareceu? O filho sequer
respondeu aos recados que foram deixados.” __ Raquel estava triste com a
situação.
Ela sabia que aquele seria
um caso difícil, além de sofrer de fortes crises de abstinência, Júlia também
estava sentindo o abandono.
Mais um mês se passou sem
que o ex-marido ou o filho aparecessem na clínica. Júlia parecia estar
aceitando melhor o tratamento, gostava das oficinas e não faltava às palestras
e aos encontros de terapia de grupo. Mas infelizmente sua terapia individual
parecia estagnada. Algo ainda estava muito encoberto pela dor e pelo
sofrimento.
___ Raquel, __ chamou a
recepcionista __ você pediu para ser avisada quando conseguíssemos falar com o
filho daquela paciente, a Júlia Guimarães. Então, eu mesma falei com ele, disse
que virá ainda essa semana, no dia da visita.
___ Muito obrigada, por
ter me avisado. Ótimo trabalho.
Ela
optou por não contar a paciente sobre a possível vinda do filho. Poderia ser
frustrante se ele não comparecesse.
Com
um metro e oitenta de altura, Caio era moreno como a mãe, com lindos olhos cor
de mel e lábios finos.
___
Oi, meu nome é Caio Guimarães, eu vim ver a minha mãe. O nome dela é Júlia
Guimarães. __ disse ele à recepcionista.
___
Eu vou avisar que está aqui. Peço que aguarde no jardim, é só seguir em frente
e virar a esquerda no final do corredor.
Júlia
estava ansiosa, as mãos tremiam, mas dessa vez não era por vontade de beber ou
de cheirar cocaína, era apenas ansiedade, veria o filho, estava com tanta
saudade.
Nos
dias de visita era permitido que os pacientes vestissem roupas comuns, não eram
obrigados a se vestir com as roupas da clínica. Quando fora internada, Danilo
enviara uma mala com roupas e objetos pessoais, alguns foram retirados, como
tesoura e barbeadores, mas outros permaneceram.
Ela
trajava um vestido azul de alças, ficava com aparência de mãe, Caio se sentiria
comovido.
Ela
achou que o filho a abraçaria e diria que estava com saudade, mas o que ouviu
foi bem diferente do que imaginava.
___
Oi. __ disse ele.
___
Oi. __ respondeu ela.
___
Aqui parece ser um bom lugar. __ disse Caio de cabeça baixa.
___
Ah, diz isso porque não está aqui dentro. __ Júlia sequer pensou no que dizia.
___
Eu não fiz nada para estar aqui. __ a voz de Caio saiu cortante.
___
Uau, você está bem malcriado! Não pode falar assim comigo, sou sua mãe!
As
vozes estavam alteradas, chamaram atenção de outros visitantes.
___
Acho que começamos mal. __ disse Júlia __ Vamos caminhar um pouco. Não precisa
ser tão duro comigo. Eu te amo!
___
E quando começou a me amar? Ah, já sei, agora que perdeu os seus dois grandes
amores, descobriu que tinha a mim! __ os olhos dele estavam cheios de lágrimas.
___
Filho, eu errei muito com você, mas agora vai ser diferente... __ começou ela.
___
Júlia, __ ele sempre a chamara assim __ eu vim aqui para te fazer uma pergunta,
uma única pergunta: quando ser mãe deixou de ter graça para você?
___
Como é?
___
Isso mesmo, mãe. __ a última palavra saiu desdenhosa __ Achou melhor ser
colchão de qualquer um, não foi?
A
resposta veio rápida como um raio, ela o esbofeteou.
___
Você não sabe nada da vida, moleque! Você não entende... __ Júlia perdeu a voz.
___
Não eu não entendo como alguém que tinha tudo, faz o que você fez. __ Caio
falou isso enquanto se encaminhava para a saída.
“Um
passo para frente, dois passos para trás.” __ pensou Raquel desanimada.
Júlia
estava deprimida, não queria conversa. Mas com jeito, Raquel conseguiu que ela
falasse.
___
Quando me casei já estava grávida do Caio. Fiquei felicíssima, minha família
estaria completa. Minha mãe, Liana, me deu todo apoio. Íamos juntas comprar as
roupinhas, cada coisinha tão linda... O Danilo também estava feliz... Eu tinha
tudo...
Por
mais difícil que seja lembrar o passado, isso é muito importante em uma
terapia, ainda mais na busca da reabilitação.
___
No primeiro mês de vida do meu filho, minha mãe praticamente se mudou para a
minha casa, o Danilo achou bom, ele gostava muito da minha mãe... e... do meu
pai também, claro.
Não
passou despercebida a hesitação de Júlia ao mencionar o pai.
___
E você, Júlia, como era a relação com o seu pai?
___
Eu amava o meu pai, se é isso o que quer saber. Só o achava um pouco difícil de
lidar, ele tinha verdadeiro pavor de médicos, precisava fazer uma cirurgia de
catarata, mas se recusou a operar. Ele enxergava muito pouco do olho esquerdo.
Certo dia ele foi buscar a minha mãe, já era noite, falei para deixarem o carro
e irem de táxi, meu pai não gostava de dormir fora, não adiantaria convidá-los
para ficar lá em casa, mas ele não quis, disse apenas que ligaria quando
chegassem. Uma hora depois ele ainda não havia ligado, fiquei preocupada,
liguei para minha mãe, mas o telefone estava fora de área. O Danilo já tinha chegado
e começamos a ligar para os hospitais. Umas três horas depois, um policial
ligou dizendo que eles haviam sofrido um acidente... estavam... estavam mortos.
Aparentemente, disseram, meu pai havia perdido o controle do carro em uma curva
e bateu de frente num poste, morreram no local.
___
Eu sinto muito. __ Raquel estava comovida __ Deve ter sido difícil para você.
___
Foi. De repente eu me vi sozinha e com um bebê para cuidar... Fiquei desesperada...
perdida... O Danilo trabalhava tanto... me deixava horas sozinha com a criança.
Ele... ele chorava muito, eu não sabia o que fazer... ele teve tudo o que você
possa imaginar, desde cólicas a candidíase cutânea. Eu precisava de um tempo,
estava cansada... dormia mal...
___
Nunca pensou que ser mãe não é fácil, que exige sacrifícios? Júlia não respondeu, mas Raquel era
esperta, não deixaria de insistir.
___
Contava com a ajuda de sua mãe, como não podia contar com ela... __ Raquel
deixou no ar a insinuação.
___
Eu tentei... mas minha vida se resumia a cuidar da casa... do bebê... esperar o
Danilo...
Raquel
não queria julgar, mas era quase impossível não fazer isso. Júlia fora
extremamente egoísta, queria o sonho, mas não a responsabilidade, tudo para ela
não passara de uma grande brincadeira.
___
Foi nessa época que você começou a se drogar?
___
Não. __ Júlia suspirou longamente __ Tive uma crise nervosa, chorei o dia
inteiro e quando o Danilo chegou, o Caio estava gritando, a fralda estava suja
e eu não havia colocado ele para mamar. Ele ficou muito preocupado comigo e me
levou ao médico. Fui encaminhada para a psiquiatria... disseram que eu estava
com depressão pós parto. A medicação era forte, eu passava horas dormindo... __
novo suspiro __ O Danilo achou que seria bom para o Caio ir para uma creche,
ele estava com oito meses... acho que a partir daí tudo piorou, eu não tinha
nada para fazer, ficava andando de um lado para o outro pela casa, a hora
parecia não passar nunca... Não sei exatamente quando foi que eu olhei para o
bar, mas não me pareceu nada demais tomar um gole. Eu já não tomava mais os
remédios, parei conta própria e ninguém percebeu... achei que não havia perigo.
É um perigo quando achamos que não há perigo. __ filosofou Júlia.
___
E?__ incentivou Raquel.
___
E que eu bebia uns drinques quando estava sozinha, me ajudavam a manter a
calma. Passei a fazer as coisas em casa, quando o Danilo chegava eu disfarçava.
Ficamos assim por um ano ou dois. Mas começamos a nos desentender, ele percebeu
que as bebidas estavam sumindo, eu estava muito irritada, não tinha desejo, não
tinha vontade de sair, ir para a pracinha, ao cinema, ou qualquer porcaria
infantil que ele inventasse. Acho que no final eu comecei a beber quando ele
dormia, era engraçado, ele acordava e eu estava indo para a cama. Nos separamos
quando o Caio estava com quatro anos, acertamos que a guarda do garoto ficaria
com ele, eu receberia uma pensão e ficaria na casa... Só tivemos condições de comprar a casa porque
eu tinha herdado um dinheiro dos meus pais quando eles faleceram. Foi nessa
época, __ continuou __ que eu comecei a
sair... estava livre... sem filho... sem marido... estava solta.
Júlia
estava de costas para a janela, estava alheia a toda beleza daquela manhã, como
estivera alheia de sua própria vida, refém de sua pseudoliberdade por anos.
___
A minha memória sofreu umas perdas. __ continuou __ Hoje eu olho para trás e
não consigo lembrar de muitas coisas, de como tudo aconteceu ao certo. Entende?
___
Isso... isso é comum, depois do uso prolongado de um alcaloide, como a cocaína.
__ lamentou Raquel.
___
São coisas que não passam nem na nossa cabeça quando vamos usar. __ Júlia
abaixou os olhos cheios de lágrimas. Ela sabia o que tinha feito a si mesma.
___
E quando foi que você começou a usar cocaína?
___
Eu já te disse que não lembro, não lembro, tá! __ gritou.
Raquel
já sabia como lidar com os ataques de fúria da paciente.
___
Calma, Júlia, calma... fique tranquila.
___
Desculpa, Raquel, me perdoa. Eu fico nervosa...
Quando
finalmente se acalmou, Raquel pediu que ela continuasse falando, que falasse de
tudo que viesse a memória.
___
Tudo bem, __ respirou fundo __ eu vou tentar. Quando eu comecei a cheirar pó,
tinha muito medo de ir ao morro comprar a droga. Eu pagava a um rapaz para ir
comprar para mim, mas isso é um serviço caro. Se eu quisesse um pó de trinta
reais, tinha que dar a mesma quantia para ele. Isso é o que chamam de um por
um. Mas teve um dia em que eu não tinha a mesma quantia para dar a ele.
Implorei que fosse, disse que eu pagava depois, mas ele disse que não podia.
Ofereci alguns objetos que tinha em casa, mas ele disse não. Fiquei
desesperada, estava com muita fissura.
Júlia
ficou em silêncio, olhava o tempo todo para o chão. Raquel sabia que esse era
um indício de vergonha, mas não poderia interromper o momento, a mulher que
hoje se encontrava ali a sua frente já havia fugido por tempo demais de suas
emoções e responsabilidades, deixaria que ficasse o quanto fosse necessário em
silêncio.
___
Até que ele me disse uma coisa, __ ela recomeçou a falar __ disse que conhecia
um homem que pagava... que pagava para mulheres terem relações com ele. Nem
pensei duas vezes, perguntei se poderia me levar até lá. A casa do tal homem
era simples, ele me disse o quanto costumava pagar e eu aceitei. Fomos para o
quarto, tirei minha roupa e... e... senti medo do que estava prestes a fazer,
mas varri todos os pensamentos da minha mente. Ah, seu eu pudesse voltar no
tempo...
Mas
não podia, tanto Júlia como Raquel sabia que isso era impraticável. É muito
digno se arrepender depois de ter praticado um mal, mas nem sempre há como
apagar isso da nossa história.
___
Bom, vamos lá, vamos lá. __ continuou __ Ele pediu que primeiro eu fizesse sexo
oral nele. Não imagina o nojo que eu senti. Quando estava excitado, subiu em
mim e me penetrou com toda a força, tentei sair debaixo dele, me arrependi, mas
não consegui. Quando achei que finalmente tinha terminado, ele me virou de
costas e... __ Júlia ficou em silêncio.
Raquel
sentiu o estômago se revirar, mas tentou se acalmar.
___
Júlia, vou pegar um copo d’água para nós.
___
Eu agradeço.
Refeitas
do momento tenso, elas se olharam. Júlia lutou contra a vontade de fugir,
contra a vontade de tomar um trago e não um copo de água. Queria
desesperadamente ficar calma. Inspirou o ar até que seus pulmões estivessem
lotados e continuou colocando para fora aquelas verdades que queria esquecer.
___
Ele me virou de costas __ falou pausadamente __ e me sodomizou. A impressão que
eu tinha era de que o membro dele era feito de ferro, me rasgando como se fosse
uma lâmina afiada. Eu acabei gritando, não aguentei. Acho que ele se assustou e
parou. Pude finalmente respirar um pouco, mas aí ele recomeçou e só parou
quando teve um orgasmo. Meu ânus doía tanto, minha vagina, meu corpo, tudo... Acabei
perdendo o medo e subi o morro para comprar a coca. Cheirei ali mesmo, na rua.
Cheirei tanto que achei que ia desmaiar, depois comprei uma garrafa de conhaque
e fui para casa. Não tomei banho, não conseguia sair do chão, bebi a garrafa
quase toda, vomitei e fiquei ali deitada no meu próprio vômito, sentindo o
cheiro da miséria que eu mesma havia procurado.
Raquel
estava se esforçando para não deixar transparecer nenhuma emoção, ainda não era
hora.
___
Depois, __ continuou Júlia __ jurei que só faria isso de novo quando eu
estivesse sem dinheiro nenhum para comprar minha droga. Mas essas promessas são
muito vãs... Fui me viciando mais e mais, o dinheiro nunca dava.
___
Então você começou a se prostituir regularmente? __ interrompeu Raquel.
___
Sim... sempre que... __ Júlia deixou o pensamento em suspenso.
Após
um longo silêncio, ela continuou:
___
Fissura, eu fico na maior fissura. Faço qualquer coisa para conseguir dar um
teco.
Na
gíria popular, “dar um teco”, significava cheirar.
___
Mas pelo menos eu nunca roubei ninguém. __ ela estava convicta do que dizia __
Eu nunca prejudiquei ninguém para manter o meu vício.
___
Você realmente acha isso? Você não sente que toda a infância do seu filho foi
roubada? Que você tirou de si mesma as chances de ter uma vida digna? __ Raquel
parecia estar alterada, mas isso era um recurso para não deixar que Júlia
entrasse em sua zona de conforto e sentisse novamente pena de si mesma.
___
Você está sendo muito dura comigo, eu não aguento. O Caio estava com o pai...
ele... ele estava bem.
___
Bem? Quantas vezes você o viu nesses anos todos, Júlia? Quantas vezes você
estava de cara limpa, sem cocaína ou sem álcool? __ Raquel parecia ser
implacável.
___
Algumas... Houve uma fase da minha vida em que eu tive vida, me livrei das
drogas, de tudo. Mas eu estava muito confusa, não conseguia entender o que era
aquilo tudo...
Raquel
pretendia confrontar a paciente com aquela linha de raciocínio, mas acabou
ficando confusa com essa fala.
___
Aquilo tudo?
___
Teve um cliente que... que foi violento comigo... de novo. Se prostituir não é
fácil... eu fiquei com muito medo, entrei na paranoia de que algum dia um deles
iria me matar... A casa onde eu moro tem dois quartos, o quarto do Caio estava
cheio de caixas, roupas velhas, um monte de tralha, então eu resolvi esvaziar
tudo para alugar. Veio uma moça mais ou menos da minha idade, era vendedora,
não ficava muito em casa... pagava direitinho. O nome dela era Luana...
De
repente, Júlia se levantou e foi para a janela, olhou para fora.
___
Raquel... olha, eu... eu quero parar por hoje. Não é uma fuga, estou exausta.
A
terapeuta concordou, também estava cansada, fora uma seção cansativa.
“Fiz
progresso!”__ Raquel estava exultante.
Júlia
entrara no consultório com um sorriso largo, parecia bastante
animada.
___
Que bom! Posso saber que progresso foi esse?
___
Claro! Finalmente saí dos rabiscos e da mistura sem sentido das cores e pintei
algo razoável. O professor ajudou.
Júlia
já apresentava outra aparência. Embora ainda estivesse muito magra, parecia
menos infeliz. Alguns funcionários notaram mudanças também no comportamento da
paciente, ela parecia bem menos agressiva mais afável.
Ela
usou todo o tempo da consulta para falar de sua vida na clínica, de como estava
se sentindo, como já entendia a atitude do ex-marido. Sobre isso disse apenas:
___
Ele me salvou, eu estava me matando.
___
Fale sobre quando ficou limpa, sem drogas.
___
Como eu disse... __ suspirou __ Aluguei o quarto do meu filho para a Luana. Não
queria que ela soubesse que eu cheirava, então acabei escondendo, mas ela
acabou me vendo caída no banheiro e me ajudou, __ fez uma pausa acompanhada de
um suspiro __ tirou minhas roupas, me lavou, secou meu cabelo... Ah, ela foi
maravilhosa... Acabei na minha cama, com uma xícara de chá quentinho ao meu
lado. Me abri com ela, falei do meu vício... dos meus problemas. Ela me
escutou, mas não respondeu nada. Ela era assim, dificilmente você conseguia
saber o que ela estava pensando.
Raquel
pensou em dizer algo, mas desistiu.
___
Tudo isso que eu estou passando aqui, a desintoxicação, eu também passei em
casa, foi tão difícil... parecia que eu ia morrer. A Luana encontrou um grupo
de apoio perto de casa e foi comigo à primeira reunião... Eu estava bem, me sentia segura... feliz... Estreitamos
a nossa amizade e coisas começaram a acontecer comigo.
Raquel
viu o rosto de Júlia corar.
___
Ela era uma pessoa realmente iluminada... acho que foi ela que percebeu o meu
interesse antes mesmo de mim... Ah, Raquel, acho que você não vai entender.
___
Por que você acha isso?
___
Porque você é toda certinha, ainda é casada, cuida dos seus filhos...
A culpa ainda pesava muito em sua consciência.
___
Júlia, eu acho que todas as formas conscientes de amor e prazer são válidas.
___
Quando estávamos juntas, eu sentia que toda ela estava dentro de mim e me
sentia dentro dela também. Beijar a Luana na boca, misturar nossa saliva,
acariciar o corpo dela, ir para a cama juntas... parecia que tinha feito aquilo
toda a minha vida.
“É tão comum essa recriminação...
Seria tão mais fácil se percebessem que a sexualidade não tem sexo...”
___
Acho que o Danilo percebeu alguma coisa... não tenho certeza. O fato é que ele
passou a deixar o Caio ficar pelo menos duas tardes por semana comigo. Era uma festa quando a Luana estava, ela o adorava. Fui mais mãe vivendo ao lado de uma mulher,
do que jamais consegui ser quando era casada.
As
hesitações de Júlia eram constantes, ela parecia temer falar sobre o que viria
a seguir.
___
Eu tenho uma capacidade incrível de estragar tudo! Encontrei um amigo da
antiga... quando ele tinha dinheiro íamos para casa dele e dividíamos um pó.
O Zé disse que eu estava bem, falou que sentiu minha falta...
resumindo, fomos para o apartamento dele, ouvimos umas músicas, ele me ofereceu
uma cerveja e eu aceitei, depois vieram mais e eu não resisti quando ele disse
que tinha um pó muito bom. A carreira era enorme, mas eu não me intimidei...
fiquei muito louca... Quando cheguei a casa já era de madrugada, a
Luana estava com os olhos inchados de tanto chorar... disse que
havia me ligado várias vezes.
“A
compulsão pela droga é sorrateira, ela nunca some de verdade.” __ pensou Raquel.
___
Viciados fazem as mais diversas promessas... Eu prometi a ela tantas coisas que
não cumpri... Depois dessa recaída, tive muitas outras. Ela passou a me procurar nos bares e nos lugares
onde eu costumava dar um teco. Disse que estava cansada daquilo tudo, que iria
embora se eu não voltasse para a terapia. Fiquei quase uma semana dentro de
casa, sem aprontar... ela sempre me perdoava...
“O
perdão nunca é eterno...”__ devaneou Raquel.
___
Eu tinha um pó escondido no banheiro, peguei... quando ela chegou viu que eu
tinha usado, mas não falou nada. Achei que tinha me dado bem, mas
quando dormi,
ela arrumou as malas e foi embora, no meio da noite. Fugiu!
___
E você não a procurou?
___
E como! Mas ela sumiu, simplesmente desapareceu. __ suspirou fundo __
Aprendi tanto com ela... não queria que fosse assim, queria que ela entendesse
que eu estava lutando, que aquilo foi um ato de fraqueza.
___
Você se achou incompreendida?
___
Raquel, acredite em mim, eu estava tentando me livrar do vício.
Para
a terapeuta era fascinante a maneira como Júlia buscava o apoio das pessoas. Como ela queria que fechassem os olhos para os
seus erros, que acreditassem nela, quando nem ela acreditava. Júlia também era viciada por sua autocomiseração.
Uma
batida forte na porta fez com que parasse de falar. Era a secretária avisando
que Raquel estava sendo chamada. Pela aflição da moça, parecia ser urgente.
Ela
as seguiu, e por instantes pareceu ver a si mesma uns
meses antes, quando havia chegado ali. A mulher a sua frente era mais jovem do
que ela, mas trazia no corpo as marcas dos maus tratos que cometera a
si mesma. A
novata estava chorando, gritava, implorava que a soltassem. Já livre das crises
de abstinência, Júlia sentiu calafrios de pensar no que ainda estaria por vir
para aquela moça.
Dias
depois ela comunicou a Raquel que queria enviar uma carta para o
filho e pediu sua ajuda para enviar.
___ Eu providenciarei para que sua carta seja enviada.
Decidida, ela começou a escrever:
“Caio, olho para o papel e
fico sem saber por onde começar. Muitos diriam que o ideal é pelo começo, mas
eu nem sei onde é o começo... quando exatamente eu me perdi de mim, de você, da
adolescente que eu fui, da mulher que eu poderia ter sido... Mas sei que o fim
foi aqui, nessa clínica, onde talvez seja o começo... talvez...
Filho, entendo que você deve ter
várias perguntas aí na sua cabeça que certamente exigem uma resposta, no
entanto, fico pensando se o certo seria isso, falar sobre coisas que eu vivi no
passado e que só me resta conviver com as limitações que elas me causam e
causarão no presente. Sinceramente, eu não acho que seja bem por aí.
Em contrapartida, sinto que estou
segura para falar sobre esperança, sobre essa porta entreaberta que a vida
deixou para mim... para nós...
Ainda há
chance de sermos amigos, porque não sei se ainda me quer como mãe. Digo isso
porque não sou tola, sei que fiz de tudo para que esse afastamento existisse e
respeito suas decisões, respeito sua dor, respeito sua memória e não tentarei
passar por cima dela.
Reflita
sobre isso e depois tome uma decisão.
Amor meu,
esteja eu onde estiver te levo no coração.
Um beijo,
Júlia.”
___ É um começo Júlia, não sei qual será a decisão dele,
mas acho que você está agindo muito bem. Parabéns!
___ Obrigada, Raquel, obrigada. Eu sei que nunca estarei
curada do meu vício, sei que sou inteiramente responsável por tudo o que eu fiz,
mas aprendi, aqui na clínica, que posso me cuidar, me manter afastada de tudo o
que me faz mal.
Raquel se limitou a sorrir e abraçou carinhosamente Júlia.
Como o futuro ainda está por ser escrito, jamais há um fim
para uma história.
FIM