segunda-feira, 14 de julho de 2014

Depois do carnaval


         O consultório era simples, consistia apenas de uma mesa de vidro e um quadro na parede.
         Essa psicóloga deve estar demorando de propósito. __ pensou Letícia __ Não é possível que ela não saiba que eu estou aqui.
         Irritada, ela se concentrou em olhar o quadro. Eram várias máscaras, com detalhes variados e coloridos, mas a última era simples, toda branca e sem nada em especial.
         Máscaras venezianas... elas são lindas, detalhadas, maravilhosas...
         ___ Desculpe o atraso, estava resolvendo um pequeno problema. __ disse Vitória.
         ___ Tudo bem. Bonito o quadro.
         ___ Obrigada.
         ___ Algum significado especial?
         ___ Talvez... mas despertou algo em você?
         ___ Confesso que fiquei incomodada com a última máscara.
         ___ Por quê?
         ___ Não sei explicar.
         ___ A simplicidade... __ suspirou __ Aqui, as máscaras caem...
         Ela deve ter mais ou menos a minha idade. Será que tem filhos? Não usa aliança, não é casada. Ela jamais vai me entender, foi um erro enorme ter vindo aqui. Mas o que importa isso? Já estou cheia de problemas, acho até que eles devem se sentir atraídos por mim.  __ pensou Letícia, amarga.
         ___ Minha história é simples. Tenho um filho lindo e um marido maravilhoso. __ fez uma pausa.
         Vitória deixou que ela continuasse organizando seus pensamentos.
         ___ Hoje faz exatamente dois anos que minha vida mudou. __ Letícia contemplava o quadro __ Meu marido é biólogo, está sempre pesquisando, viajando... Eu sou fotógrafa, tenho um estúdio no andar de baixo da nossa casa. __ mais uma pausa __ É difícil falar... até hoje  ainda não entendi direito o que aconteceu.
         ___ Não se apresse.
         Uma médica pediatra amiga de Vitória havia recomendado a Letícia que a procurasse. Depois, ligou para a colega a fim de falar brevemente sobre essa paciente, mas não lhe adiantara o problema, disse apenas que ela deixasse o horário livre, sem marcar nenhuma outra consulta.
         Intrigada, Vitória fez o que lhe fora recomendado. E ali estava ela, Letícia. A moça deveria ter uns 30 anos, era negra, esguia, cabelos castanhos, curtos, e muito bonita.
         ___ Nosso filho tem dois anos e se chama Tomás, é uma criança extremamente carinhosa. O parto dele foi tranqüilo, meu marido estava ao meu lado... Levamos ele para casa, ele parecia ser um bebê normal, mas percebemos que ele ganhava pouco peso e estava sempre com muita sede. Eu vivia questionando a pediatra dele sobre isso e ela dizia que isso acontecia com algumas crianças. Fiquei desconfiada e resolvi trocar de pediatra. Quando consultamos a doutora Simone, ela pediu uma série de exames... __ nova pausa, acompanhada de um forte suspiro __ inclusive o de tipagem saguínea. Foi aí que minha vida começou a desabar. O Vini, Vinícius, meu marido, deu uma olhada nos resultados e viu que o sangue do Tomás é A positivo, sendo que tanto eu, quanto ele somos O positivo.
         A essa altura, Letícia torcia nervosamente as mãos e finalmente o problema começava a se delinear.
         ___ O Vinícius disse que algo deveria estar errado, o sangue do Tomás jamais poderia ser daquele tipo. Foi aí que ele pediu que a pediatra solicitasse a repetição do exame. Eu fiquei desesperada...
         As últimas palavras saíram estranguladas.
         ___ Letícia, vou pedir para trazerem uma água para nós.
         Esse foi o artifício usado pela psicóloga para ganhar tempo. Aquele seria um caso bem difícil.
         Não vou conseguir beber essa água, minha garganta está fechada. __ pensou Letícia.
         ___ O exame foi refeito e deu o mesmo resultado. Vinícius se fechou em copas, não quis conversar. Nos voltamos completamente para o possível problema do nosso filho. __ aí a voz dela embargou __ Relatamos que ele comia bem, gostava de frutas, comia legumes e nada de engordar. Contamos também sobre o excessivo número de trocas de fraldas, em como isso era estranho. A doutora Simone foi muito cautelosa no diagnóstico, preferiu acompanhar por um tempo o caso dele. Nesse meio tempo, em casa, o Vinícius e eu mal nos falávamos. Por fim, veio o  diagnóstico, o Tomás é diabético do tipo 1, é dependente de insulina. Ficamos arrasados.
         Com mãos trêmulas, Letícia finalmente bebeu um gole da água.
         ___ O que foi que eu fiz? __ perguntou ela, mas a pergunta era retórica __ O que foi que eu fiz com a minha vida?
         ___ Fique calma, respire fundo. __ disse Vitória.
         ___ Tudo estava nos seus devidos lugares e eu baguncei tudo, fiz tudo errado. __ respirou __ Acabei com o meu casamento em apenas algumas horas...
         ___ Continue respirando fundo.
___ Eu estou bem. __ Letícia procurou se recompor da melhor maneira que pôde. __ Não tinha para onde correr, tive que ter a tão temida conversa com o Vinícius. Contei para ele como tudo aconteceu.
         ___ E como foi?
         ___ Há dois anos, uns dias antes do Carnaval, meu marido teve que viajar, nós havíamos brigado, já vínhamos brigando há algum tempo, e ele viajou sem falar comigo direito. Eu havia sido contratada para tirar umas fotos de uma festa de Carnaval em um clube, não poderia deixar de ir. Chegando lá, vi um rapaz fantasiado de Pierrot e tirei uma foto dele. Fiquei encantada quando ele fez um truque de mágica e me deu uma rosa. Fotografei mais um pouco e... já tinha feito mais de cem fotos já tinha um bom material para trabalhar. Encontramos-nos de novo na saída, mas ele já estava sem a máscara, reconheci-o pela fantasia. Devo confessar que ele tem um rosto fantástico, é um homem extremamente bonito.
         Por breves momentos, Vitória sentiu que Letícia estava longe. Aos poucos ela voltou de sua lembrança:
         ___ Num impulso, convidei ele para ir ao meu estúdio fazer umas fotos, disse que o cachê não seria alto, mas ele topou. A minha ideia era fotografá-lo sem a máscara, só com a fantasia. No dia seguinte, arrumei tudo, ele foi pontual.
         A voz de Letícia era fraca, lenta.
         ___ Depois de um tempo, fizemos uma pausa, ele estava um pouco cansado, fui a casa pegar um suco que já deixara preparado, quando desci, conversamos um pouco e Márcio, esse é o nome dele, falou que morava no Espírito Santo, estava de férias aqui no Rio. Ali, olhando para ele, pensei que aquela pessoa não tinha nada do palhaço triste, não o imaginei apaixonado por uma mulher que quisesse outro. Pedi que tirasse a parte de cima da fantasia, queria contrastar a tristeza do palhaço, com o corpo másculo dele. Que mulher não iria querer consolar aquele Pierrot? Tive de me aproximar para arrumar parte da roupa que estava arriada demais. Eu não tenho assistente, trabalho sozinha...
         A vergonha e o constrangimento estão estampados no rosto dela. __ pensou Vitória.
         ___ Foi nessa hora __ continuou __ que olhamos um nos olhos do outro e nos beijamos, fizemos amor ali mesmo, no chão. Ele ficou sem jeito, eu também... acabamos nos desculpando um com o outro e ele foi embora. Engravidei de um homem que nem sei onde encontrar. Sou uma louca!
         Vitória sentiu que a sessão ficaria pesada demais caso continuasse, mais para frente faria com que Letícia voltasse no tempo e resgatasse as emoções sentidas na época.
         Letícia apareceu na hora marcada, mas tinha os olhos vermelhos e o rosto cansado.
         ___ Oi, tudo bem? __ Vitória preferiu entrar logo no assunto.
         ___ As coisas em casa estão muito complicadas.
         ___ Quer falar sobre isso?
___ Quero, eu preciso falar. O Vinícius mal fala comigo. Não me acostumei a aplicar a insulina no Tomás, ele fica chorando e eu também choro e peço desculpas a ele. Meu marido fica irritado comigo, com tudo. Sou uma boa mãe, deixo ele sempre sequinho, limpinho. Sofro muito quando tenho que dar a injeção, preferia não ter que fazer isso.  Sinto um certo conforto quando é o Vinícius que cuida dele. Não que eu não ame o meu filho, mas vendo a minha vida assim, tão destruída...
         Não passou despercebido pela psicóloga a forma como a paciente se referia ao marido, o apelido carinhoso de antes já não estava mais sendo usado.
         ___ Você sente que seria melhor que se ele não existisse, se você não tivesse engravidado.
         ___ É exatamente assim que eu me sinto. Aquele homem teria sumido da minha vida, e tudo seria como antes. Eu não teria que passar por toda essa turbulência, meu marido continuaria me amando e eu a ele. Mas não, ele finge que eu não existo.
         ___ A situação é difícil, Letícia, você tem que dar um tempo para ele.
         ___ Eu sei disso, estou tentando, juro que estou tentando.     ___ É a maneira que ele encontrou de lidar com tudo isso nesse momento.
         Letícia ficou calada.
___ Na semana passada, você me disse mais ou menos como tudo aconteceu, mas alguns detalhes ficaram para trás. Por exemplo, qual o motivo da briga entre você e o seu marido? Vocês brigaram antes dele viajar, não foi?
___ Vitória, eu não conheci meu pai, ele morreu antes de eu nascer., não soube como era... não, vou explicar do início, é melhor. Minha mãe se casou com o meu pai ainda muito jovem, ele era dezoito anos mais velho que ela. Ela se apaixonou por ele a primeira vista, mas meu pai era cardíaco e nunca se cuidou, morreu cedo demais. Ela conseguiu trabalhar como faz tudo na casa de uma mulher que havia vindo da Inglaterra há pouco, eu tinha um ano na época. Essa senhora me criou junto com a minha mãe, me ensinou a falar inglês, me colocou nas melhores escolas particulares, cuidou de mim com o maior amor.
Os olhos de Letícia pareceram menos tristes ao lembrar de sua infância.
___ Dona Margarida, a patroa da minha mãe, era solteira, jamais se casou, viveu sozinha a vida toda, disse que havia voltado ao Brasil porque não suportava o inverno inglês. Mamãe também não casou de novo depois da morte do meu pai. Resumindo a história, eu não tive convívio íntimo com nenhuma figura masculina, nunca soube como é viver com um homem até me casar.
Realmente, ser criada só por mulheres pode ser difícil, mas essa é uma realidade muito comum no Brasil, mulheres chefes de família. Embora não seja necessariamente essa a situação retratada por ela, uma das conseqüências é essa.  __ pensou Vitória.
___ No início, tudo é perdoável, achamos os pequenos deslizes do nosso companheiro engraçados, mas depois de oito anos juntos, fica difícil. O Vinícius é extremamente desorganizado, estou cansada de falar as mesmas coisas, sempre deixando tudo fora do lugar. Eu estava cansada, eu estou cansada, mas não... não é certo dizer isso, um marido tão bom quanto o meu... pelo menos é o que a minha mãe sempre diz. __ fez uma pausa. O olhar dela mostrava todo o seu abatimento. __Uns dias antes de viajar, ele foi ao estúdio procurar alguma coisa. __ continuou __ Um pouco depois, voltou dizendo que sem querer quebrou um equipamento meu. Vitória, quando eu fui ver, ele havia quebrado a minha câmera mais cara, era uma Sigma SD15, de 14 megapixels, essa máquina custou três mil, setecentos e vinte cinco reais, foi um presente da minha mãe, ela quis me ajudar, coitada, sabia que era caro demais para eu poder comprar. Fiquei arrasada, briguei com ele. Ele disse que estava procurando a câmera fotográfica dele, uma simples, que usava no trabalho. Se tivesse me perguntado, eu diria que estava no escritório, junto com suas coisas que eu havia arrumado.
___ Não havia como consertar? __ perguntou, Vitória.
___ Não, perda total, ela estava em cima de uma prateleira alta, quebrou a lente, quebrou tudo. __ respondeu Letícia triste.
Pensando no que Letícia acabara de dizer sobre a desorganização do marido, Vitória lembrou de uma pesquisa recente que acabara de ler. Os resultados diziam que a ordem proporciona sensação de profissionalismo e serenidade.
Os espaços ordenados, como o estúdio de Letícia, inspiram disciplina e escolhas saudáveis, já os espaços bagunçados são fundamentais para a criatividade.
Infelizmente nada daquilo amenizaria o problema da paciente.
___ Letícia, feche os olhos, isso. Vamos tentar voltar no tempo o máximo que conseguirmos. Não quero que me diga como aconteceu, quero apenas que volte ao momento em que foi arrumar a fantasia do rapaz que estava caída demais
___ Sim, estávamos conversando, ele estava muito nervoso.
___ Você se aproximou...
___ Os olhos dele são de um verde quase transparente, muito claros. Ele estava suando, pensei que deveria diminuir um pouco a luz, depois melhoraria a imagem no computador. Quando encostei na roupa, sem querer toquei nele.
___ Continue lembrando, mas agora sem falar, traga apenas para a memória.
Letícia sentiu como se encostasse novamente naquela pele quente. Levantou lentamente os olhos ao mesmo tempo em que Márcio tocava em seu braço, em seu pescoço, em sua orelha, por fim, tocou levemente em sua boca.
Os lábios dele eram finos, contrastavam grandemente com os dela, que eram carnudos. Mas sua língua parecia ter o mesmo calor que sua pele, era úmida, firme...
Ele a segurou firme, quase com força, a prendeu em seu beijo. Letícia não resistiu, tirou sua blusa de malha e o jeans, a fantasia de Pierrot jazia disforme no chão, ela lembrava vagamente do brilho das lantejoulas.
O peso do corpo dele sobre ela não lhe pareceu estranho, o ar ainda passava por suas narinas e lhe inflava o corpo dando energia para continuar suspirando.
Márcio a experimentava como se estivesse comendo jambo; ela era macia, suculenta e perfumada.
A barba grossa a arranhava um pouco, mas Letícia gostou daquele contato que lhe causara pequenos arrepios.
As mãos do rapaz pareciam estar em todas as partes do seu corpo, explorando-lhe as entranhas... Letícia procurou dominá-lo, manter-se por cima e descobriu que seria mais bem acolhida ainda, ele não se mostrou constrangido, ajudou-a a se equilibrar melhor.
Eles suavam, escorregavam pelo corpo um do outro. Márcio parecia sedento, lambia cada gota que saía de seu corpo, o prazer parecia não ter fim.
Os dentes ainda trincavam ambas as carnes, os lábios sugavam com força, as mãos apertavam. Como vulcões, entraram em erupção, e Tomás foi concebido.
___ Letícia, quero que permaneça de olhos fechados e me diga o que sentiu.
Um rubor imperceptível surgiu no rosto dela.
___ Prazer. __ respondeu.
___ Está sentindo alguma culpa?
___ Não, apenas respirando junto com ele, não quero pensar.
___ Mas pensamentos depois vieram à sua cabeça.
___ Sim. Assim que acabou pensei no Vini, senti saudade dele. Foi como se luzes se acendessem naquele momento.
___ Abra os olhos.
Assim ela fez.
___ Letícia, a culpa veio assim que tudo acabou... Pelo que você falou, pude perceber que foi um momento, você não planejou nada.
___ Mas eu fui leviana, meu filho nasceu doente por minha causa.
Vitória já havia percebido o quão grande era o conflito emocional da paciente, levaria tempo até ela entender que deveria viver sua dor, experimentá-la, como estava fazendo naquele momento, mas também que deveria deixá-la ir. Embora a traição seja uma escolha, devendo-se assumir sua responsabilidade, isso não deve implicar que a pessoa mereça ficar se condenando o tempo todo.
___ Letícia, falar em leviandade associada a erro involuntário é um caminho de dor que não tem volta. Vamos conversar melhor na próxima semana.
As duas consultas seguintes foram canceladas, Vitória sabia que estava chegando perto do que chamava de ponto nevrálgico, mas a decisão de continuar ou não era de Letícia.
A função do psicólogo é orientar; ele não deve tomar decisões pelo paciente, o profissionalismo deve anteceder as emoções.
E assim Vitória viu a semana passar.
___ Vitória, __ disse Gabriela, a secretária __ sua paciente das quatro vem hoje.
___ Obrigada, Gabriela. Estava mesmo esperando que ela voltasse.
Encabulada, Letícia entrou na sala.
Vitória procurou em seu rosto algum sinal que indicasse sua ausência na semana anterior, mas encontrou apenas os mesmos olhos tristes.
___ Vitória, eu sinto muito, não me senti com forças para vir aqui na semana passada. O Tomás ficou gripado e muito enjoadinho na hora de tomar a insulina, fiquei esgotada. Acompanho todas as notícias que saem sobre a insulina em comprimidos, mas parece que ainda vai demorar um pouco.
___ Mas só o fato de as pesquisas estarem tão adiantadas, é uma esperança a mais.
___ Você tem razão.
___ Na última sessão falamos sobre ...
___ Por favor, Vitória, não precisamos voltar a isso, não é? Falamos sobre... sobre o dia em que engravidei.
___ Exatamente, foi aí que paramos. Agora diga, como foi quando o seu marido voltou?
___ Eu ainda estava chateada com ele, mas me sentia culpada demais pelo que havia feito. Fizemos as pazes na mesma hora.
___ E a descoberta da gravidez?
___ Um pesadelo. __ disse Letícia, sincera __ Um pesadelo daqueles. Eu não sabia se o bebê era do Márcio ou do Vinícius. Fiz o exame de sangue para saber o número de semanas, depois fiz as contas, descobri que não poderia ser do meu marido. __ sua boca se contorceu __ O Vini ficou apaixonado pela ideia de ser pai. Já estávamos tentando há algum tempo, mas sabíamos que teríamos de esperar um ano de tentativas nulas para procurar um médico. Bom, pelo menos foi o que me disse o meu ginecologista.
___ Esse é um procedimento padrão, mas há muitos pais que preferem fazer os exames de fertilidade assim que param de se proteger.
___ Passei toda a gravidez nervosa, não poderia levar aquilo adiante. Pensei em contar para o meu marido, mas tive medo. Não me abri com ninguém, guardei o meu segredo.
Vitória pensou em como Letícia deveria ter sofrido.
___ Tinha dias em que o bebê ficava muito agitado, chutava muito, e o Vini dizia que ele seria um jogador de futebol. __ sorriu __ Senti todos os medos normais durante a gravidez: será que o meu bebezinho nasceria perfeito? Teria todos os dedinhos? Nasceria grande?
Letícia fez uma longa pausa, mas Vitória apenas esperou, como já fizera outras vezes.
___ O Vinícius, assim como o pai do meu filho, também é branco. Eu sabia que a criança seria uma mistura de raças. Mas... __ foi aí que ela chorou, pela primeira vez.
Em silêncio, Vitória ofereceu uma caixa de lenços de papel a ela.
___ Por favor, podemos terminar mais cedo? Eu ...
Dessa vez, foi Vitória quem suspirou. Letícia ainda estava muito hesitante, preferia fugir a enfrentar suas questões.
___ Pode... mas não é indo embora que os problemas vão sumir.
___ Você tem razão, mas preciso ir.
Vitória a viu sair da sala sem saber se ela voltaria. A fragilidade de Letícia estava cada vez mais aparente, o estado de ânimo dela estava ficando tremendamente comprometido.
Na consulta seguinte...
___ Vitória, você disse que eu deveria enfrentar meus medos. Estou tentando, mas às vezes é tão difícil. Se ao menos o Vinícius conversasse comigo? Quando ele se dirige a mim é apenas para falar sobre o Tomás. Ele ama o meu filho de verdade, eu vejo isso. Mas nós, marido e mulher, não existimos mais, há meses ele não encosta em mim, dorme no quarto do garoto, dali vai trabalhar, nem sei por onde ele anda. Eu sei que ele precisa de um tempo, mas isso está me amargurando. Não posso viver assim... Até quando ele vai me punir?
Até onde vai a dor de uma pessoa e a vontade de vivê-la é algo indefinível. __ pensou Vitória __ Pode ser que o marido esteja querendo puni-la pelo que ela fez e, se for isso mesmo, vai levar às últimas consequências a sua vingança. Isso poderia ser perigoso, para ambos, pois tanto Letícia quanto Vinícius estavam no auge da mágoa.
Letícia chegou agitada a consulta.
___ Conversei com ele. __ continuou Letícia __ Pedi que saísse de casa. Ele fez uma cena, disse que eu jamais o afastaria do Tomás, que eu era uma traidora e merecia tudo o que estava passando.
___ E você, como se sentiu?
___ Por incrível que pareça, me senti aliviada, eu queria que ele jogasse tudo para fora. Achei bom.
___ E depois?
___ Depois? Eu vi o Vinícius murchar... ele arrumou as coisas dele... telefonou para alguém, provavelmente o Jaime, o nosso padrinho de casamento e grande amigo dele, e foi embora. Disse que gostaria de continuar me acompanhando nas consultas do Tomás, que queria continuar vendo ele e pediu __ sua voz ficou embargada __ que eu cuidasse bem do nosso filho, que eu parasse de chorar junto com ele quando aplicasse a insulina. __ ela estava muito emocionada __ Juro, ele falou “nosso filho”. Sonhamos muito com uma criança, pintamos o quartinho dele juntos, compramos as roupinhas, os brinquedos...
As lágrimas desciam livremente pelo rosto de Letícia.
___ Ah, Vitória, foi tão triste... eu estou tão mal.
Vitória também estava muito emocionada, sentia dificuldade de manter o controle. Segurou firme a mão de Letícia.
Aquele foi um momento de catarse, a libertação psíquica de Letícia.
___ Eu disse que ele poderia ver o Tomás sempre que pudesse.
O dia a dia tanto da mãe quanto do filho foram alterados, Letícia já não contava com mais ninguém para ajudar a cuidar do bebê, falara brevemente com sua mãe sobre a separação e dissera a ela que estava bem, que não se preocupasse.
Letícia acabou se aproximando mais do filho, amando-o plenamente e não o olhando como o fruto de sua traição ou pior ainda, como pivô de sua separação.
Todo esse amadurecimento foi observado e orientado por Vitória.
___ O Vinícius tem ido ver o Tomás. No início ele o levava para passear de carro, mas depois acabou brincando com ele em casa mesmo.
Hum, ele está querendo se aproximar. __ pensou Vitória.
___ Procuro não impor minha presença, fico trabalhando sempre no estúdio.
___ Faz muito bem, você deve mesmo dar espaço a ele.
Mas parecia que o tempo estava curando os machucados de Vinícius, ele já incluía Letícia em seus passeios com Tomás, embora o menino já não sentisse tanto a ausência da mãe.
É __ pensou Vitória __ o vento arranca as folhas da árvore e as joga no rio, mas a árvore sempre se recompõe. O vento que sacudiu a vida deles não contava com a força desse amor.



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