O
consultório era simples, consistia apenas de uma mesa de vidro e um quadro na
parede.
Essa psicóloga deve estar demorando de
propósito. __ pensou Letícia __ Não
é possível que ela não saiba que eu estou aqui.
Irritada,
ela se concentrou em olhar o quadro. Eram várias máscaras, com detalhes
variados e coloridos, mas a última era simples, toda branca e sem nada em
especial.
Máscaras
venezianas... elas são lindas, detalhadas, maravilhosas...
___
Desculpe o atraso, estava resolvendo um pequeno problema. __ disse Vitória.
___
Tudo bem. Bonito o quadro.
___
Obrigada.
___
Algum significado especial?
___
Talvez... mas despertou algo em você?
___
Confesso que fiquei incomodada com a última máscara.
___
Por quê?
___
Não sei explicar.
___
A simplicidade... __ suspirou __ Aqui, as máscaras caem...
Ela deve ter mais ou menos a minha idade.
Será que tem filhos? Não usa aliança, não é casada. Ela jamais vai me entender,
foi um erro enorme ter vindo aqui. Mas o que importa isso? Já estou cheia de problemas,
acho até que eles devem se sentir atraídos por mim. __ pensou Letícia, amarga.
___
Minha história é simples. Tenho um filho lindo e um marido maravilhoso. __ fez
uma pausa.
Vitória
deixou que ela continuasse organizando seus pensamentos.
___
Hoje faz exatamente dois anos que minha vida mudou. __ Letícia contemplava o
quadro __ Meu marido é biólogo, está sempre pesquisando, viajando... Eu sou
fotógrafa, tenho um estúdio no andar de baixo da nossa casa. __ mais uma pausa
__ É difícil falar... até hoje ainda não
entendi direito o que aconteceu.
___
Não se apresse.
Uma
médica pediatra amiga de Vitória havia recomendado a Letícia que a procurasse. Depois,
ligou para a colega a fim de falar brevemente sobre essa paciente, mas não lhe
adiantara o problema, disse apenas que ela deixasse o horário livre, sem marcar
nenhuma outra consulta.
Intrigada,
Vitória fez o que lhe fora recomendado. E ali estava ela, Letícia. A moça
deveria ter uns 30 anos, era negra, esguia, cabelos castanhos, curtos, e muito
bonita.
___
Nosso filho tem dois anos e se chama Tomás, é uma criança extremamente
carinhosa. O parto dele foi tranqüilo, meu marido estava ao meu lado... Levamos
ele para casa, ele parecia ser um bebê normal, mas percebemos que ele ganhava
pouco peso e estava sempre com muita sede. Eu vivia questionando a pediatra
dele sobre isso e ela dizia que isso acontecia com algumas crianças. Fiquei
desconfiada e resolvi trocar de pediatra. Quando consultamos a doutora Simone,
ela pediu uma série de exames... __ nova pausa, acompanhada de um forte suspiro
__ inclusive o de tipagem saguínea. Foi aí que minha vida começou a desabar. O
Vini, Vinícius, meu marido, deu uma olhada nos resultados e viu que o sangue do
Tomás é A positivo, sendo que tanto eu, quanto ele somos O positivo.
A
essa altura, Letícia torcia nervosamente as mãos e finalmente o problema
começava a se delinear.
___
O Vinícius disse que algo deveria estar errado, o sangue do Tomás jamais
poderia ser daquele tipo. Foi aí que ele pediu que a pediatra solicitasse a
repetição do exame. Eu fiquei desesperada...
As
últimas palavras saíram estranguladas.
___
Letícia, vou pedir para trazerem uma água para nós.
Esse
foi o artifício usado pela psicóloga para ganhar tempo. Aquele seria um caso
bem difícil.
Não vou conseguir beber essa água, minha
garganta está fechada. __ pensou Letícia.
___
O exame foi refeito e deu o mesmo resultado. Vinícius se fechou em copas, não
quis conversar. Nos voltamos completamente para o possível problema do nosso
filho. __ aí a voz dela embargou __ Relatamos que ele comia bem, gostava de
frutas, comia legumes e nada de engordar. Contamos também sobre o excessivo
número de trocas de fraldas, em como isso era estranho. A doutora Simone foi
muito cautelosa no diagnóstico, preferiu acompanhar por um tempo o caso dele.
Nesse meio tempo, em casa, o Vinícius e eu mal nos falávamos. Por fim, veio o diagnóstico, o Tomás é diabético do tipo 1, é
dependente de insulina. Ficamos arrasados.
Com
mãos trêmulas, Letícia finalmente bebeu um gole da água.
___
O que foi que eu fiz? __ perguntou ela, mas a pergunta era retórica __ O que
foi que eu fiz com a minha vida?
___
Fique calma, respire fundo. __ disse Vitória.
___
Tudo estava nos seus devidos lugares e eu baguncei tudo, fiz tudo errado. __
respirou __ Acabei com o meu casamento em apenas algumas horas...
___
Continue respirando fundo.
___ Eu estou bem. __
Letícia procurou se recompor da melhor maneira que pôde. __ Não tinha para onde
correr, tive que ter a tão temida conversa com o Vinícius. Contei para ele como
tudo aconteceu.
___
E como foi?
___
Há dois anos, uns dias antes do Carnaval, meu marido teve que viajar, nós havíamos
brigado, já vínhamos brigando há algum tempo, e ele viajou sem falar comigo
direito. Eu havia sido contratada para tirar umas fotos de uma festa de
Carnaval em um clube, não poderia deixar de ir. Chegando lá, vi um rapaz
fantasiado de Pierrot e tirei uma foto dele. Fiquei encantada quando ele fez um
truque de mágica e me deu uma rosa. Fotografei mais um pouco e... já tinha
feito mais de cem fotos já tinha um bom material para trabalhar. Encontramos-nos
de novo na saída, mas ele já estava sem a máscara, reconheci-o pela fantasia.
Devo confessar que ele tem um rosto fantástico, é um homem extremamente bonito.
Por
breves momentos, Vitória sentiu que Letícia estava longe. Aos poucos ela voltou
de sua lembrança:
___
Num impulso, convidei ele para ir ao meu estúdio fazer umas fotos, disse que o
cachê não seria alto, mas ele topou. A minha ideia era fotografá-lo sem a
máscara, só com a fantasia. No dia seguinte, arrumei tudo, ele foi pontual.
A
voz de Letícia era fraca, lenta.
___
Depois de um tempo, fizemos uma pausa, ele estava um pouco cansado, fui a casa
pegar um suco que já deixara preparado, quando desci, conversamos um pouco e
Márcio, esse é o nome dele, falou que morava no Espírito Santo, estava de
férias aqui no Rio. Ali, olhando para ele, pensei que aquela pessoa não tinha
nada do palhaço triste, não o imaginei apaixonado por uma mulher que quisesse
outro. Pedi que tirasse a parte de cima da fantasia, queria contrastar a
tristeza do palhaço, com o corpo másculo dele. Que mulher não iria querer
consolar aquele Pierrot? Tive de me aproximar para arrumar parte da roupa que
estava arriada demais. Eu não tenho assistente, trabalho sozinha...
A vergonha e o constrangimento estão
estampados no rosto dela. __ pensou Vitória.
___
Foi nessa hora __ continuou __ que olhamos um nos olhos do outro e nos
beijamos, fizemos amor ali mesmo, no chão. Ele ficou sem jeito, eu também...
acabamos nos desculpando um com o outro e ele foi embora. Engravidei de um
homem que nem sei onde encontrar. Sou uma louca!
Vitória
sentiu que a sessão ficaria pesada demais caso continuasse, mais para frente
faria com que Letícia voltasse no tempo e resgatasse as emoções sentidas na
época.
Letícia
apareceu na hora marcada, mas tinha os olhos vermelhos e o rosto cansado.
___
Oi, tudo bem? __ Vitória preferiu entrar logo no assunto.
___
As coisas em casa estão muito complicadas.
___
Quer falar sobre isso?
___ Quero, eu preciso
falar. O Vinícius mal fala comigo. Não me acostumei a aplicar a insulina no Tomás,
ele fica chorando e eu também choro e peço desculpas a ele. Meu marido fica
irritado comigo, com tudo. Sou uma boa mãe, deixo ele sempre sequinho,
limpinho. Sofro muito quando tenho que dar a injeção, preferia não ter que
fazer isso. Sinto um certo conforto
quando é o Vinícius que cuida dele. Não que eu não ame o meu filho, mas vendo a
minha vida assim, tão destruída...
Não
passou despercebido pela psicóloga a forma como a paciente se referia ao
marido, o apelido carinhoso de antes já não estava mais sendo usado.
___
Você sente que seria melhor que se ele não existisse, se você não tivesse
engravidado.
___
É exatamente assim que eu me sinto. Aquele homem teria sumido da minha vida, e
tudo seria como antes. Eu não teria que passar por toda essa turbulência, meu
marido continuaria me amando e eu a ele. Mas não, ele finge que eu não existo.
___
A situação é difícil, Letícia, você tem que dar um tempo para ele.
___
Eu sei disso, estou tentando, juro que estou tentando. ___ É a maneira que ele encontrou de lidar com tudo isso nesse
momento.
Letícia
ficou calada.
___ Na semana passada,
você me disse mais ou menos como tudo aconteceu, mas alguns detalhes ficaram
para trás. Por exemplo, qual o motivo da briga entre você e o seu marido? Vocês
brigaram antes dele viajar, não foi?
___ Vitória, eu não
conheci meu pai, ele morreu antes de eu nascer., não soube como era... não, vou
explicar do início, é melhor. Minha mãe se casou com o meu pai ainda muito
jovem, ele era dezoito anos mais velho que ela. Ela se apaixonou por ele a
primeira vista, mas meu pai era cardíaco e nunca se cuidou, morreu cedo demais.
Ela conseguiu trabalhar como faz tudo na casa de uma mulher que havia vindo da
Inglaterra há pouco, eu tinha um ano na época. Essa senhora me criou junto com
a minha mãe, me ensinou a falar inglês, me colocou nas melhores escolas
particulares, cuidou de mim com o maior amor.
Os olhos de Letícia
pareceram menos tristes ao lembrar de sua infância.
___ Dona Margarida, a
patroa da minha mãe, era solteira, jamais se casou, viveu sozinha a vida toda,
disse que havia voltado ao Brasil porque não suportava o inverno inglês. Mamãe
também não casou de novo depois da morte do meu pai. Resumindo a história, eu
não tive convívio íntimo com nenhuma figura masculina, nunca soube como é viver
com um homem até me casar.
Realmente, ser criada só por mulheres pode ser difícil, mas
essa é uma realidade muito comum no Brasil, mulheres chefes de família. Embora
não seja necessariamente essa a situação retratada por ela, uma das conseqüências
é essa. __ pensou Vitória.
___ No início, tudo é
perdoável, achamos os pequenos deslizes do nosso companheiro engraçados, mas
depois de oito anos juntos, fica difícil. O Vinícius é extremamente
desorganizado, estou cansada de falar as mesmas coisas, sempre deixando tudo
fora do lugar. Eu estava cansada, eu estou cansada, mas não... não é certo
dizer isso, um marido tão bom quanto o meu... pelo menos é o que a minha mãe
sempre diz. __ fez uma pausa. O olhar dela mostrava todo o seu abatimento. __Uns
dias antes de viajar, ele foi ao estúdio procurar alguma coisa. __ continuou __
Um pouco depois, voltou dizendo que sem querer quebrou um equipamento meu.
Vitória, quando eu fui ver, ele havia quebrado a minha câmera mais cara, era uma
Sigma SD15, de 14 megapixels, essa máquina custou três mil, setecentos e vinte
cinco reais, foi um presente da minha mãe, ela quis me ajudar, coitada, sabia
que era caro demais para eu poder comprar. Fiquei arrasada, briguei com ele. Ele
disse que estava procurando a câmera fotográfica dele, uma simples, que usava
no trabalho. Se tivesse me perguntado, eu diria que estava no escritório, junto
com suas coisas que eu havia arrumado.
___ Não havia como
consertar? __ perguntou, Vitória.
___ Não, perda total,
ela estava em cima de uma prateleira alta, quebrou a lente, quebrou tudo. __
respondeu Letícia triste.
Pensando no que Letícia
acabara de dizer sobre a desorganização do marido, Vitória lembrou de uma
pesquisa recente que acabara de ler. Os resultados diziam que a ordem
proporciona sensação de profissionalismo e serenidade.
Os espaços ordenados,
como o estúdio de Letícia, inspiram disciplina e escolhas saudáveis, já os
espaços bagunçados são fundamentais para a criatividade.
Infelizmente nada daquilo
amenizaria o problema da paciente.
___ Letícia, feche os
olhos, isso. Vamos tentar voltar no tempo o máximo que conseguirmos. Não quero
que me diga como aconteceu, quero apenas que volte ao momento em que foi
arrumar a fantasia do rapaz que estava caída demais
___ Sim, estávamos
conversando, ele estava muito nervoso.
___ Você se
aproximou...
___ Os olhos dele são
de um verde quase transparente, muito claros. Ele estava suando, pensei que
deveria diminuir um pouco a luz, depois melhoraria a imagem no computador.
Quando encostei na roupa, sem querer toquei nele.
___ Continue lembrando,
mas agora sem falar, traga apenas para a memória.
Letícia sentiu como se
encostasse novamente naquela pele quente. Levantou lentamente os olhos ao mesmo
tempo em que Márcio tocava em seu braço, em seu pescoço, em sua orelha, por
fim, tocou levemente em sua boca.
Os lábios dele eram
finos, contrastavam grandemente com os dela, que eram carnudos. Mas sua língua
parecia ter o mesmo calor que sua pele, era úmida, firme...
Ele a segurou firme,
quase com força, a prendeu em seu beijo. Letícia não resistiu, tirou sua blusa
de malha e o jeans, a fantasia de Pierrot jazia disforme no chão, ela lembrava
vagamente do brilho das lantejoulas.
O peso do corpo dele
sobre ela não lhe pareceu estranho, o ar ainda passava por suas narinas e lhe
inflava o corpo dando energia para continuar suspirando.
Márcio a experimentava
como se estivesse comendo jambo; ela era macia, suculenta e perfumada.
A barba grossa a
arranhava um pouco, mas Letícia gostou daquele contato que lhe causara pequenos
arrepios.
As mãos do rapaz
pareciam estar em todas as partes do seu corpo, explorando-lhe as entranhas...
Letícia procurou dominá-lo, manter-se por cima e descobriu que seria mais bem
acolhida ainda, ele não se mostrou constrangido, ajudou-a a se equilibrar
melhor.
Eles suavam,
escorregavam pelo corpo um do outro. Márcio parecia sedento, lambia cada gota
que saía de seu corpo, o prazer parecia não ter fim.
Os dentes ainda
trincavam ambas as carnes, os lábios sugavam com força, as mãos apertavam. Como
vulcões, entraram em erupção, e Tomás foi concebido.
___ Letícia, quero que
permaneça de olhos fechados e me diga o que sentiu.
Um rubor imperceptível
surgiu no rosto dela.
___ Prazer. __
respondeu.
___ Está sentindo
alguma culpa?
___ Não, apenas
respirando junto com ele, não quero pensar.
___ Mas pensamentos depois
vieram à sua cabeça.
___ Sim. Assim que
acabou pensei no Vini, senti saudade dele. Foi como se luzes se acendessem
naquele momento.
___ Abra os olhos.
Assim ela fez.
___ Letícia, a culpa
veio assim que tudo acabou... Pelo que você falou, pude perceber que foi um
momento, você não planejou nada.
___ Mas eu fui leviana,
meu filho nasceu doente por minha causa.
Vitória já havia
percebido o quão grande era o conflito emocional da paciente, levaria tempo até
ela entender que deveria viver sua dor, experimentá-la, como estava fazendo
naquele momento, mas também que deveria deixá-la ir. Embora a traição seja uma
escolha, devendo-se assumir sua responsabilidade, isso não deve implicar que a
pessoa mereça ficar se condenando o tempo todo.
___ Letícia, falar em
leviandade associada a erro involuntário é um caminho de dor que não tem volta.
Vamos conversar melhor na próxima semana.
As duas consultas seguintes
foram canceladas, Vitória sabia que estava chegando perto do que chamava de
ponto nevrálgico, mas a decisão de continuar ou não era de Letícia.
A função do psicólogo é
orientar; ele não deve tomar decisões pelo paciente, o profissionalismo deve
anteceder as emoções.
E assim Vitória viu a
semana passar.
___ Vitória, __ disse
Gabriela, a secretária __ sua paciente das quatro vem hoje.
___ Obrigada, Gabriela.
Estava mesmo esperando que ela voltasse.
Encabulada, Letícia
entrou na sala.
Vitória procurou em seu
rosto algum sinal que indicasse sua ausência na semana anterior, mas encontrou
apenas os mesmos olhos tristes.
___ Vitória, eu sinto
muito, não me senti com forças para vir aqui na semana passada. O Tomás ficou
gripado e muito enjoadinho na hora de tomar a insulina, fiquei esgotada.
Acompanho todas as notícias que saem sobre a insulina em comprimidos, mas
parece que ainda vai demorar um pouco.
___ Mas só o fato de as
pesquisas estarem tão adiantadas, é uma esperança a mais.
___ Você tem razão.
___ Na última sessão
falamos sobre ...
___ Por favor, Vitória,
não precisamos voltar a isso, não é? Falamos sobre... sobre o dia em que
engravidei.
___ Exatamente, foi aí
que paramos. Agora diga, como foi quando o seu marido voltou?
___ Eu ainda estava
chateada com ele, mas me sentia culpada demais pelo que havia feito. Fizemos as
pazes na mesma hora.
___ E a descoberta da
gravidez?
___ Um pesadelo. __
disse Letícia, sincera __ Um pesadelo daqueles. Eu não sabia se o bebê era do
Márcio ou do Vinícius. Fiz o exame de sangue para saber o número de semanas, depois
fiz as contas, descobri que não poderia ser do meu marido. __ sua boca se
contorceu __ O Vini ficou apaixonado pela ideia de ser pai. Já estávamos
tentando há algum tempo, mas sabíamos que teríamos de esperar um ano de
tentativas nulas para procurar um médico. Bom, pelo menos foi o que me disse o
meu ginecologista.
___ Esse é um
procedimento padrão, mas há muitos pais que preferem fazer os exames de fertilidade
assim que param de se proteger.
___ Passei toda a
gravidez nervosa, não poderia levar aquilo adiante. Pensei em contar para o meu
marido, mas tive medo. Não me abri com ninguém, guardei o meu segredo.
Vitória pensou em como
Letícia deveria ter sofrido.
___ Tinha dias em que o
bebê ficava muito agitado, chutava muito, e o Vini dizia que ele seria um
jogador de futebol. __ sorriu __ Senti todos os medos normais durante a gravidez:
será que o meu bebezinho nasceria perfeito? Teria todos os dedinhos? Nasceria
grande?
Letícia fez uma longa
pausa, mas Vitória apenas esperou, como já fizera outras vezes.
___ O Vinícius, assim
como o pai do meu filho, também é branco. Eu sabia que a criança seria uma
mistura de raças. Mas... __ foi aí que ela chorou, pela primeira vez.
Em silêncio, Vitória
ofereceu uma caixa de lenços de papel a ela.
___ Por favor, podemos
terminar mais cedo? Eu ...
Dessa vez, foi Vitória
quem suspirou. Letícia ainda estava muito hesitante, preferia fugir a enfrentar
suas questões.
___ Pode... mas não é
indo embora que os problemas vão sumir.
___ Você tem razão, mas
preciso ir.
Vitória a viu sair da
sala sem saber se ela voltaria. A fragilidade de Letícia estava cada vez mais
aparente, o estado de ânimo dela estava ficando tremendamente comprometido.
Na consulta seguinte...
___ Vitória, você disse
que eu deveria enfrentar meus medos. Estou tentando, mas às vezes é tão
difícil. Se ao menos o Vinícius conversasse comigo? Quando ele se dirige a mim
é apenas para falar sobre o Tomás. Ele ama o meu filho de verdade, eu vejo
isso. Mas nós, marido e mulher, não existimos mais, há meses ele não encosta em
mim, dorme no quarto do garoto, dali vai trabalhar, nem sei por onde ele anda.
Eu sei que ele precisa de um tempo, mas isso está me amargurando. Não posso
viver assim... Até quando ele vai me punir?
Até onde vai a dor de uma pessoa e a vontade de vivê-la é
algo indefinível.
__ pensou Vitória __ Pode ser que o
marido esteja querendo puni-la pelo que ela fez e, se for isso mesmo, vai levar
às últimas consequências a sua vingança. Isso poderia ser perigoso, para ambos,
pois tanto Letícia quanto Vinícius estavam no auge da mágoa.
Letícia chegou agitada
a consulta.
___ Conversei com ele.
__ continuou Letícia __ Pedi que saísse de casa. Ele fez uma cena, disse que eu
jamais o afastaria do Tomás, que eu era uma traidora e merecia tudo o que
estava passando.
___ E você, como se
sentiu?
___ Por incrível que
pareça, me senti aliviada, eu queria que ele jogasse tudo para fora. Achei bom.
___ E depois?
___ Depois? Eu vi o
Vinícius murchar... ele arrumou as coisas dele... telefonou para alguém,
provavelmente o Jaime, o nosso padrinho de casamento e grande amigo dele, e foi
embora. Disse que gostaria de continuar me acompanhando nas consultas do Tomás,
que queria continuar vendo ele e pediu __ sua voz ficou embargada __ que eu
cuidasse bem do nosso filho, que eu parasse de chorar junto com ele quando
aplicasse a insulina. __ ela estava muito emocionada __ Juro, ele falou “nosso
filho”. Sonhamos muito com uma criança, pintamos o quartinho dele juntos,
compramos as roupinhas, os brinquedos...
As lágrimas desciam livremente
pelo rosto de Letícia.
___ Ah, Vitória, foi
tão triste... eu estou tão mal.
Vitória também estava
muito emocionada, sentia dificuldade de manter o controle. Segurou firme a mão
de Letícia.
Aquele foi um momento
de catarse, a libertação psíquica de Letícia.
___ Eu disse que ele
poderia ver o Tomás sempre que pudesse.
O dia a dia tanto da
mãe quanto do filho foram alterados, Letícia já não contava com mais ninguém
para ajudar a cuidar do bebê, falara brevemente com sua mãe sobre a separação e
dissera a ela que estava bem, que não se preocupasse.
Letícia acabou se
aproximando mais do filho, amando-o plenamente e não o olhando como o fruto de
sua traição ou pior ainda, como pivô de sua separação.
Todo esse
amadurecimento foi observado e orientado por Vitória.
___ O Vinícius tem ido
ver o Tomás. No início ele o levava para passear de carro, mas depois acabou
brincando com ele em casa mesmo.
Hum, ele está querendo se aproximar. __ pensou Vitória.
___ Procuro não impor
minha presença, fico trabalhando sempre no estúdio.
___ Faz muito bem, você
deve mesmo dar espaço a ele.
Mas parecia que o tempo
estava curando os machucados de Vinícius, ele já incluía Letícia em seus
passeios com Tomás, embora o menino já não sentisse tanto a ausência da mãe.
É
__ pensou Vitória __ o vento arranca as
folhas da árvore e as joga no rio, mas a árvore sempre se recompõe. O vento que
sacudiu a vida deles não contava com a força desse amor.
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