sábado, 21 de junho de 2014

Tensão invisível

Acho que hoje vai dar, o trabalho no escritório está adiantado, a petição inicial vai ser entregue amanhã. __ pensou.
         Faltando algumas horas para o final de seu expediente ele saiu, disse ao estagiário que não voltaria mais, que esperasse por Armando, seu sócio, pois esse poderia ter algum pedido para fazer ainda.
         No metrô suas pernas tremeram.
         Pensando melhor, talvez o ideal seja eu ir direto para casa, a discussão com a Nancy foi péssima, está ficando cada vez pior a situação, não quero mais problemas.
         Embora a voz da razão soprasse em seu ouvido o caminho a ser tomado, ele não se mexeu do lugar, continuou ali esperando o metrô.
         Nancy sempre fora calma, doce, nunca exigiu muito dele, sabia que não era amada, mas achava que poderia lidar com isso, na verdade ela não se importava com esse fato, para ela isso era um mero detalhe.
 Maurício, por sua vez, procurou proporcionar-lhe uma vida confortável, quando ela quis parar de trabalhar para cuidar da casa, ele não se opôs, o que ganhava no escritório dava muito bem para manter o padrão de vida deles.
Há determinadas coisas na vida que não temos como disfarçar...
O metrô chegou dispersando os pensamentos dele.
Somos apenas carne, um amontoado de carne.
___ Com licença, senhor. __ disse uma jovem.
Quando foi que eu deixei de ser apenas um rapaz? Quando foi que eu me tornei um senhor? Isso parece tão sério: senhor... parece que o sorriso se foi, levando minha juventude com ele.
Embora ainda não tivesse 40 anos, trazia sempre o rosto fechado, sério, não parecia mais a pessoa descontraída que era na faculdade.
A discussão ontem começou por causa disso, Nancy me acusou de não ser feliz porque eu não sorrio mais. Agora tudo é motivo de briga. Não há motivo algum para eu sorrir.
Na semana anterior, encontrou a esposa esperando sentada no sofá, com uma taça de vinho na mão.
___ Cada dia você chega em um horário diferente em casa. Não o esperei para jantar.
___ Pelo visto você preferiu nem jantar.
___ Sozinha? Não.
___ Nancy, você sabe muito bem que nem todas as audiências que eu faço são no Centro, às vezes eu vou para longe.
___ Deveria ir trabalhar de carro, assim você não demora tanto para voltar.
Tirando a gravata, ele sentou no sofá exausto.
___ Você sabe que eu detesto dirigir.
___ Não, eu acho que o seu problema não é esse, você adora demorar na rua, provavelmente fazendo alguma coisa que eu não sei.
___ Nancy, estou cansado, amanhã tenho que trabalhar cedo, realmente estou sem paciência para ficar discutindo com você.
___ Nem um carinho você me dá, nem de amor você me chama... __ começou a chorar__ Antes de nos casarmos você parecia ser tão feliz, estava sempre sorrindo. Qual é o problema? Qual é o seu problema?
Em silêncio, Maurício pegou o paletó, a gravata, a pasta e foi para o quarto. Simplesmente detestava aquelas ceninhas patéticas que pareciam tão ao gosto da mulher. Pelo visto ela beberia a garrafa toda e talvez dormisse na sala mesmo.
Pegou na pasta um documento, na verdade um cartão com algo escrito, sentiu um enorme conforto olhando para aquilo.
Vivemos de nossas escolhas, mas não precisamos ser reféns delas.
Toda a erudição desse pensamento não o confortou, até mesmo Shakespeare sofreu com a indecisão.
___ Como era mesmo aquela passagem? __ perguntou para si __ Lembrei: “Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre em nosso espírito sofrer pedras e flechas com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja, ou insurgir-nos contra um mar de provocações e em luta pôr-lhes fim?”
Recitar Shakespeare a uma hora dessas... francamente, preciso descansar.
Mas a sensação de incômodo persistiu, o vazio daquela vida era enorme.
Amanhã eu vou!
Naquela manhã acordou feliz, corajoso. Estava assoviando quando ouviu Nancy pedindo para ele parar com o barulho porque estava com dor de cabeça.
       Nada como uma descarga de mau humor para acabar com a manhã.
         Oscilando entre a vontade e o medo, Maurício mal sentiu o dia passando.
         Desceu apressado do metrô, com passos rápidos chegou ao seu destino.
         Há quanto tempo não venho, deveria ter dado um fim nisso há muito tempo!
         A rua era pouco movimentada, mas no bairro onde estava ninguém acharia estranho ver um homem, elegantemente vestido, parado na rua. O bairro de classe média alta era famoso por sua tranqüilidade.
         Ressabiado, olhou para os dois lados da rua, não havia nada com o que se preocupar.
         Vou entrar!
         Não sabia o quanto era feliz ali, o quanto sua vida mudava de significado, parecia ter um rumo, uma direção.
         É festa!
         Seu armário continuava da maneira como o havia visto pela última vez, tudo no mesmo lugar, tudo o que precisava estava ali. Tocar em seus objetos era como ser transportado para outro mundo.
         ___ Pensei que não veria mais você, Maurício.
         ___ Você sabe que eu sempre volto.
         ___ Eu poderia não estar aqui. Você não telefonou.
         ___ Eu sei que te devo desculpas... __ a frase ficou em suspenso.
         Havia uma pergunta a ser feita:
         ___ Hoje vai poder ficar um pouco mais?
         Ele pensou, adoraria dizer aquele par de olhos castanhos que ficaria para sempre, mas sabia que não podia, a vida, o mundo, continuava a girar lá fora e ele precisava fazer parte disso.
         ___ Não. __ a voz saiu insegura, carente.
         ___ Lembra da última vez?
         ___ Como eu poderia esquecer? Foi fantástico, penso nisso todos os dias.
         ___ Que bom!
         ___ Sabe que eu sofro, sou fraco.
         ___ Todos nós sofremos, mas há um provérbio japonês antigo que diz o seguinte: “Aquele que ri, ao invés de enfurecer-se, é sempre o mais forte.”. Todos somos fortes a nossa maneira.
         ___ Eu te amo.
         ___ Maurício... ah... Para que perder tempo com jogos de palavras. Eu também te amo. Vou te deixar a vontade.
         O silêncio era completo, havia apenas uma luz acesa e ele se colocou no meio dela.
         O som suave do piano acompanhou a voz nos primeiros acordes de “Ne me quitte pás” ao melhor estilo de Piaf.
         Os aplausos surgiram.
       Estou feliz!
         Ao cantar o seguinte trecho, buscou os doces olhos amados:
         “Moi je t’offrirai
         Des perles de pluie
         Venues de pays
         Où il ne pleut pas
         Je creuserai la terre
         Jusqu’apres ma mort
         Pour couvrir ton corps
         D’or et lumière” [i]
        
         Estava no seu auge, maravilhoso, sublime.
         Os últimos versos sempre guardam surpresas, e ao imprimir sua voz suave em: “Laisse-moi devenir” [ii], ouviu-se o som ensurdecedor de um tiro sendo disparado.
         A diva estava caída no chão. Todos correram para ampará-la, inclusive sua algoz.
         ___ Maurício me perdoa. Eu estava louca, desconfiada, segui você até aqui. Oh, meu Deus, o que foi que eu fiz? Não morra, não morra...
         A voz estava difícil de sair, a dor era lancinante.
         ___ Nancy, eu tentei, mas não consegui.
         ___ Maurício, por favor, não vá embora. Agora que ela sabe de tudo ainda podemos ficar juntos.
         A voz de André penetrava como que vinda de longe nos ouvidos de Maurício.
         ___ Je ne vais plus pleurer.[iii] Eu te amo, André, jamais deveria ter escondido o que eu era.
         Aos poucos os olhos foram se fechando, o silêncio tomou conta de tudo, seu corpo já não sentia mais dor, estava partindo, partia como deveria ter nascido.
        


        




[i] Te oferecerei
Pérolas de chuva
Vindas de um país
Onde não chove
Revolverei a terra
Muito além da minha morte
Para cobrir o teu corpo
De ouro e luz

[ii] Deixa-me existir
[iii]  Eu não vou chorar

Um comentário:

  1. As pessoas acabam esquecendo de quem são. As pessoas criam imagens de uma e outra e não conhecem quem verdadeiramente está ao seu lado. Não existem amor entre as pessoas dessa sociedade.

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