quinta-feira, 26 de junho de 2014

Vivendo o sonho


___ Fracassado!
         Que situação, agora até mesmo o espelho fala mal de mim.__ pensou Anderson.
         ___ Não estou falando mal de você, só estou falando a verdade. Você é um fracassado! __ falou sua própria imagem refletida no espelho.
         ___ Olha aqui, eu sou um escritor, e vou fazer muito sucesso! Está me ouvindo? Eu vou fazer muito sucesso! __ gritou Anderson.
         A voz imediatamente cessou.
         Ele tinha um encontro com Paula, teria de se arrumar o mais rápido possível. Terminou de se barbear e foi direto para o chuveiro.
         Ela vai adorar a surpresa! Quando ela sorrir e disser que me ama, direi o mesmo para ela e seremos muito felizes.
         Paula trabalhava como recepcionista em uma clínica ali perto e Anderson resolveu surpreendê-la se escondendo atrás de uma árvore.
         ___ Olá, princesa. __ disse ele.
         ___ Você quase me assustou, heim.
         ___ Sorria.
         ___ Adoro o seu jeito brincalhão, já estou me acostumando.
         ___ Sendo assim, uma menina tão bem comportada, não tenho outra coisa a fazer que não seja levá-la para tomar um chope gelado e comer alguma coisa de frente para o mar. __ riram juntos.
         ___ Nossa, que convite maravilhoso! O que estamos comemorando? Recebeu um aumento e já vamos gastar? Adoro isso!
         Abraçados, sentaram em um quiosque do calçadão de Copacabana.
         Após brindarem a novidade de que Paula ainda nem tomara conhecimento, Anderson finalmente falou o que era.
         ___ Larguei o emprego. __ disse ele.
         ___ Como?
         ___ Saí do trabalho. Daqui para frente vou me dedicar exclusivamente ao meu talento: serei um escritor!
         ___ Como assim? __ indignada com a notícia ,Paula tentava entender o significado daquilo tudo __ Como assim, Anderson? Como largou o trabalho e agora será escritor?
         ___ Amor, é simples. Pedi para sair da empresa, fiz acordo. Trabalhei lá por um ano, tenho direito a algumas parcelas do seguro desemprego, não vou ficar completamente sem dinheiro, terei o suficiente para escrever o meu livro.
         Paula sempre fora muito regrada com relação as finanças, morava de aluguel em um kitnet bem pequeno, juntava tudo o que podia para pagar a mensalidade do curso de enfermagem, que fazia à noite. Para ela aquela era uma loucura sem tamanho.
         ___ Paula, eu já publiquei um livro uma vez, deu certo.
         ___ Anderson, você publicou um livro com os seus recursos, você mesmo que teve de pagar pela maior parte das despesas. Tirando a sua mãe, que comprou umas trinta unidades, poucos foram os amigos que compraram. Isso sem falar que mais ninguém apareceu no lançamento.
         ___ Eu sei disso, por esse motivo que eu preciso me concentrar, para escrever melhor, dar vazão aos meus pensamentos, a minha criatividade.
         Anderson estava tão orgulhoso de si, que parecia impossível contrariá-lo, parecia que tudo realmente daria certo, mas Paula era uma mulher vivida, nascida e criada em um bairro pobre da zona oeste da cidade, sabia muito bem o que era não ter os pés no chão, seu pai vivera a vida toda com ares de grandeza e morreu pobre, sem dinheiro sequer para o enterro, a mãe partira logo depois.
         ___ Anderson, não quero bancar a chata, sei que você tem talento, que o seu trabalho é bom, adorei o seu livro, mas as coisas não podem ser feitas dessa maneira, você não pode largar tudo...
         Ele não entendia porque a namorada parecia tão desolada, o sucesso viria.
         Mas havia aquela voz bem lá no fundo de seu cérebro que teimava em chamá-lo de fracassado. Ele havia tentado divulgar nas redes sociais seu livro, escrevera para o jornal, sempre que podia falava com as pessoas sobre sua obra, mas nada.
         Na lista dos mais vendidos estavam romances açucarados, vendidos para o cinema, ou livros de autoajuda, no qual propagavam que poderiam mudar sua vida em semanas, ou ainda, livros que diziam que poderiam proteger seu casamento.
         Anderson estava farto disso, queria trazer algo inovador, um trabalho diferente de tudo o que o Brasil costumava importar do estrangeiro.
         ___ Paula...
         ___ Anderson, assim fica complicado. Antes, quando você ainda trabalhava, as coisas já estavam difíceis, a gente quase não saía, só um cineminha de vez em quando, mas eu entendia, porque eu sei que o dinheiro anda curto, mas agora, pelo visto tudo vai piorar.
         ___ Amor, nós podemos economizar um pouco mais... olha... podemos ficar mais em casa, fazer caminhada pelo bairro, ver filme da televisão.
         ___ Ah, ta, e quando o dinheiro ficar mais curto ainda, o que vamos fazer? Vamos diminuir a comida também?
         ___ Pode ser, eu estou mesmo precisando fazer uma dietinha, e você já é magra. __ olhou para ela com o seu melhor olhar de cãozinho abandonado.
         Paula olhou-o bem fundo nos olhos e levantou da mesa.
         ___ Ei, aonde vai? Eu estava só brincando... macarrão ainda tem um preço razoável... vai dar para comer.
         Ele se sentiu um incompreendido, Einstein também tivera dificuldades no tempo dele, chegaram a dizer que o famoso físico não chegaria a lugar algum.
         Falando para si mesmo, ele disse:
         ___ Beethoven era como eu, as pessoas não o entendiam bem. Ele era desajeitado com o violino, preferia tocar suas próprias composições, não estava nem aí para melhorar a técnica e ficar reproduzindo o repertório dos outros.
         Na terceira rodada, ele que não estava acostumado a beber, começou a conversar com o garçom.
         ___ Você sabia que Alexander Graham Bell foi o grande inventor do telefone? Pois é, ele tentou vender sua invenção para uma grande empresa americana e sabe o que eles disseram? Não. Foi a resposta que ele recebeu.
         Como o movimento ainda era pouco, o rapaz deu um pouco de atenção àquele cliente.
         ___ Obrigado, meu amigo, obrigado por me emprestar seus ouvidos. Ela me dispensou, mas eu te digo, um dia eu serei famoso, vou fazer muito sucesso com os meus livros. Houveram outros gênios não reconhecidos em um primeiro momento de suas vidas. Darwin escreveu a Teoria da Evolução, mas não quero falar muito sobre ele, só reconheceram o seu valor quando já estava morto, não é um exemplo lá muito bom, dada a atual conjuntura; Thomas Edison inventou a lâmpada elétrica e o gramofone, os professores dele chegaram a dizer que ele era burro demais para aprender qualquer coisa. Enfim, tantas pessoas talentosíssimas...
         ___ Senhor, posso lhe dar um conselho? Vá para casa, descanse um pouco... Vai ser melhor .
         ___ Não sei se você está dizendo isso porque eu posso acabar ficando bêbado aqui e dando trabalho ou não, e olha que essa é uma possibilidade. __ ele riu __ Mas prefiro acreditar que suas sóbrias palavras são para o meu bem, vou embora.
         Pagou a conta e deixou uma gorda gorjeta para o rapaz simpático.
         O dia seguinte surgiu tímido, de sol ameno, até meio frio.
         ___ Nada como um friozinho, um chocolate quente e o meu computador para começar a escrever.
         E assim ele fez na semana que seguiu.
         Escrevi um capítulo inteirinho. Que maravilha, eu sou muito bom mesmo. __ pensou.
         O espelho novamente falou com ele:
         ___ Fracassado.
         ___ Olha aqui, eu sei muito bem quem você é. Você é minha estima que anda em baixa. Fica aí me atormentando, me chamando de fracassado. Faz parte do processo de escrever ser questionado por si mesmo.
         ___ Então essa é a sua desculpa para não ter se barbeado esse tempo todo? Por isso você não veio aqui e me encarou de frente?
         ___ Está ficando meio estranha essa nossa relação, você não acha? __ riu, sem graça __ Tudo bem que eu adoro falar comigo mesmo, sou um excelente ouvinte mas, sinceramente, você está me incomodando... Isso é assédio.
         ___ Prefere chamar de assédio sua consciência pesada, é?
         ___ Olha aqui __ disse ele olhando duramente para sua imagem no espelho __ não estou com a consciência pesada, fiz o certo.
         ___ O certo para quem?
         ___ Para mim, para a sociedade... Eu não poderia ficar trabalhando em uma coisa que eu não gosto.
         ___ Então você prega que só devemos fazer o que gostamos?
         ___ Mas é claro?
         ___ Nunca passou pela sua cabeça que quando o que gostamos se torna obrigação já não gostamos tanto? Muitos escritores têm outras funções, escrever é só uma delas.
         ___ Está bem, está bem... hoje você está inspirado para me perturbar.
         ___ Já que eu sou você, logo você mesmo está se questionando.
         ___ Ai, definitivamente devo estar pirando. Aqui, trancado dentro do meu apartamento, ouvindo o meu reflexo no espelho. __ dramaticamente acrescentou __ Vale tudo pela arte.
         ___ Não sei se isso te consola, mas Virgínia Woolf, Van Gogh e Lima Barreto, tinham problemas psiquiátricos, mas eram muito criativos. Barreto, por exemplo, foi diagnosticado com neurastenia, além de sofrer de depressão.
         ___ Já chega! Nem mais uma palavra! __ disse Anderson, o de fora do espelho, enfático.
         Um mês depois e ele resolveu ler tudo o que havia escrito até aquele momento. Leu, leu de novo e de novo, até que finalmente decidiu enviar para um amigo ler.
         Era a história de um vampiro deprimido que criticava a sociedade por seu parasitismo, já que tivera centenas de anos para observá-la. Cansado da solidão, ele resolveu arrumar uma companheira para passar a eternidade, mas ninguém quis se envolver com ele, porque o trapalhão foi mordido quando já era velho e ainda por cima, feio.
         Aqui eu trabalho vários temas, como o fato de a sociedade ter evoluído tecnologicamente, mas não tendo convertido isso para um bem maior, deterioraram o planeta. Muito boa essa! Além de ter a questão da imagem, de como a imagem é importante até mesmo para se conseguir uma companheira.
        Eu sou muito inteligente!
         Depois de quase uma semana de espera, o amigo respondeu dizendo que a ideia não era nem um pouco original e que o tema era fraco.
         Anderson teve que dar o braço a torcer, sabia que o texto era ruim, mas não quisera admitir. Ficou deprimido, mais isolado ainda dentro de casa.
         Dormia e acordava olhando o notebook  fechado, não tinha vontade de escrever sobre outro tema, continuava pensando em seu vampiro bonachão.
         Quando largara o emprego, ele achava que seria fácil produzir algo, já que estava em casa, confortável, com todo o tempo do mundo, mas descobriu o óbvio, inspiração não surge no momento em que se deseja, ela simplesmente brota de algum lugar do cérebro.
         Quando a campainha tocou, ele se surpreendeu, havia pedido aos amigos que não o procurassem porque, segundo ele, estava criando.
         ___ Oi. __disse Paula.
         ___ Oi. __ surpreso, ele não sabia mais o que dizer.
         ___ Estava preocupada com você. Não me ligou e nossos amigos não o veem mais. O que houve?
         ___ Não precisa se preocupar, eu__ enfatizou a palavra__ estou muito bem, estou escrevendo o meu livro.
         ___ Então me mostra como ele está ficando.
         ___ Um livro é como uma noiva, não pode ser visto antes de estar pronto.
         ___ Anderson, eu te conheço. Você não produziu algo que valesse a pena continuar, porque do contrário você iria correr para me mostrar e jogar na minha cara o seu talento.
         ___ Eu não seria tão cruel assim, na verdade eu apenas telefonaria dizendo como estava indo tudo.
         Ela sabia que ele estava tentando provocar o riso.
         ___ Ah, então você não tem nada mesmo. Olhe em volta, esse apartamento está todo imundo, os armários estão vazios... você está em dificuldades.
         ___ Eu diria que estou apenas jejuando um pouco.
         Paula não conteve o riso, mesmo nas situações mais precárias ele era engraçado, ela riu daquele maluco inconsequente que ela tanto amava.
         O sorriso dela era tão lindo, que ele sentiu o coração apertar, assim como o estômago, claro, e outras vontades surgiram também.
         ___ Venha, vou ser seu mecenas hoje e vou te levar para jantar.
         Depois do jantar, foram juntos para a casa dele e fizeram amor.
         ___ Anderson, você tem que sair um pouco daqui, olhar a rua, ver as pessoas. Quem sabe sua inspiração não volta?
         Mais confiante, seguiu a risca os conselhos da namorada, mas sua inspiração não veio e o dinheiro acabou.
         ___ Paula, me dou por vencido... vou procurar um emprego, talvez seja melhor assim.
         Ela ficou triste por ver a tristeza dele, mas não tinha como ajudá-lo.
         ___ Estou aqui, espelho, pronto para ouvir seu sermão.
         Mas seu reflexo não respondeu a provocação. Anderson começou a achar que talvez tenha enlouquecido por um curto espaço de tempo, nunca saberia.
         Como tinha experiência em planilhas, conseguiu um emprego no escritório de um pet shopping, era o gerente.
         Os animais eram a paixão dele, todos os dias conversava com eles, fazia carinho e os mimava, sabia o nome e a raça de cada um deles.
         Foi assim que ele teve a ideia de escrever uma história infantil em que os animaizinhos eram os protagonistas que viviam as maiores aventuras enquanto seus donos dormiam.
         A história foi extremamente elogiada por Paula.
         ___ Sucesso! __ disse ela.
         ___ Vai ficar melhor ainda, vou pedir a um amigo para fazer uma parceria comigo, acho que esse livro deveria ser digital, hoje em dia as crianças vivem com eletrônicos nas mãos, elas vão adorar.
         Não só o amigo topou, como conseguiram patrocínio para a empreitada.
         ___ O meu escritor favorito merece uma série de cuidados regados a champanhe. __ disse Paula.

         Anderson, que estava no computador, salvou tudo e apagou a luz.

sábado, 21 de junho de 2014

Tensão invisível

Acho que hoje vai dar, o trabalho no escritório está adiantado, a petição inicial vai ser entregue amanhã. __ pensou.
         Faltando algumas horas para o final de seu expediente ele saiu, disse ao estagiário que não voltaria mais, que esperasse por Armando, seu sócio, pois esse poderia ter algum pedido para fazer ainda.
         No metrô suas pernas tremeram.
         Pensando melhor, talvez o ideal seja eu ir direto para casa, a discussão com a Nancy foi péssima, está ficando cada vez pior a situação, não quero mais problemas.
         Embora a voz da razão soprasse em seu ouvido o caminho a ser tomado, ele não se mexeu do lugar, continuou ali esperando o metrô.
         Nancy sempre fora calma, doce, nunca exigiu muito dele, sabia que não era amada, mas achava que poderia lidar com isso, na verdade ela não se importava com esse fato, para ela isso era um mero detalhe.
 Maurício, por sua vez, procurou proporcionar-lhe uma vida confortável, quando ela quis parar de trabalhar para cuidar da casa, ele não se opôs, o que ganhava no escritório dava muito bem para manter o padrão de vida deles.
Há determinadas coisas na vida que não temos como disfarçar...
O metrô chegou dispersando os pensamentos dele.
Somos apenas carne, um amontoado de carne.
___ Com licença, senhor. __ disse uma jovem.
Quando foi que eu deixei de ser apenas um rapaz? Quando foi que eu me tornei um senhor? Isso parece tão sério: senhor... parece que o sorriso se foi, levando minha juventude com ele.
Embora ainda não tivesse 40 anos, trazia sempre o rosto fechado, sério, não parecia mais a pessoa descontraída que era na faculdade.
A discussão ontem começou por causa disso, Nancy me acusou de não ser feliz porque eu não sorrio mais. Agora tudo é motivo de briga. Não há motivo algum para eu sorrir.
Na semana anterior, encontrou a esposa esperando sentada no sofá, com uma taça de vinho na mão.
___ Cada dia você chega em um horário diferente em casa. Não o esperei para jantar.
___ Pelo visto você preferiu nem jantar.
___ Sozinha? Não.
___ Nancy, você sabe muito bem que nem todas as audiências que eu faço são no Centro, às vezes eu vou para longe.
___ Deveria ir trabalhar de carro, assim você não demora tanto para voltar.
Tirando a gravata, ele sentou no sofá exausto.
___ Você sabe que eu detesto dirigir.
___ Não, eu acho que o seu problema não é esse, você adora demorar na rua, provavelmente fazendo alguma coisa que eu não sei.
___ Nancy, estou cansado, amanhã tenho que trabalhar cedo, realmente estou sem paciência para ficar discutindo com você.
___ Nem um carinho você me dá, nem de amor você me chama... __ começou a chorar__ Antes de nos casarmos você parecia ser tão feliz, estava sempre sorrindo. Qual é o problema? Qual é o seu problema?
Em silêncio, Maurício pegou o paletó, a gravata, a pasta e foi para o quarto. Simplesmente detestava aquelas ceninhas patéticas que pareciam tão ao gosto da mulher. Pelo visto ela beberia a garrafa toda e talvez dormisse na sala mesmo.
Pegou na pasta um documento, na verdade um cartão com algo escrito, sentiu um enorme conforto olhando para aquilo.
Vivemos de nossas escolhas, mas não precisamos ser reféns delas.
Toda a erudição desse pensamento não o confortou, até mesmo Shakespeare sofreu com a indecisão.
___ Como era mesmo aquela passagem? __ perguntou para si __ Lembrei: “Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre em nosso espírito sofrer pedras e flechas com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja, ou insurgir-nos contra um mar de provocações e em luta pôr-lhes fim?”
Recitar Shakespeare a uma hora dessas... francamente, preciso descansar.
Mas a sensação de incômodo persistiu, o vazio daquela vida era enorme.
Amanhã eu vou!
Naquela manhã acordou feliz, corajoso. Estava assoviando quando ouviu Nancy pedindo para ele parar com o barulho porque estava com dor de cabeça.
       Nada como uma descarga de mau humor para acabar com a manhã.
         Oscilando entre a vontade e o medo, Maurício mal sentiu o dia passando.
         Desceu apressado do metrô, com passos rápidos chegou ao seu destino.
         Há quanto tempo não venho, deveria ter dado um fim nisso há muito tempo!
         A rua era pouco movimentada, mas no bairro onde estava ninguém acharia estranho ver um homem, elegantemente vestido, parado na rua. O bairro de classe média alta era famoso por sua tranqüilidade.
         Ressabiado, olhou para os dois lados da rua, não havia nada com o que se preocupar.
         Vou entrar!
         Não sabia o quanto era feliz ali, o quanto sua vida mudava de significado, parecia ter um rumo, uma direção.
         É festa!
         Seu armário continuava da maneira como o havia visto pela última vez, tudo no mesmo lugar, tudo o que precisava estava ali. Tocar em seus objetos era como ser transportado para outro mundo.
         ___ Pensei que não veria mais você, Maurício.
         ___ Você sabe que eu sempre volto.
         ___ Eu poderia não estar aqui. Você não telefonou.
         ___ Eu sei que te devo desculpas... __ a frase ficou em suspenso.
         Havia uma pergunta a ser feita:
         ___ Hoje vai poder ficar um pouco mais?
         Ele pensou, adoraria dizer aquele par de olhos castanhos que ficaria para sempre, mas sabia que não podia, a vida, o mundo, continuava a girar lá fora e ele precisava fazer parte disso.
         ___ Não. __ a voz saiu insegura, carente.
         ___ Lembra da última vez?
         ___ Como eu poderia esquecer? Foi fantástico, penso nisso todos os dias.
         ___ Que bom!
         ___ Sabe que eu sofro, sou fraco.
         ___ Todos nós sofremos, mas há um provérbio japonês antigo que diz o seguinte: “Aquele que ri, ao invés de enfurecer-se, é sempre o mais forte.”. Todos somos fortes a nossa maneira.
         ___ Eu te amo.
         ___ Maurício... ah... Para que perder tempo com jogos de palavras. Eu também te amo. Vou te deixar a vontade.
         O silêncio era completo, havia apenas uma luz acesa e ele se colocou no meio dela.
         O som suave do piano acompanhou a voz nos primeiros acordes de “Ne me quitte pás” ao melhor estilo de Piaf.
         Os aplausos surgiram.
       Estou feliz!
         Ao cantar o seguinte trecho, buscou os doces olhos amados:
         “Moi je t’offrirai
         Des perles de pluie
         Venues de pays
         Où il ne pleut pas
         Je creuserai la terre
         Jusqu’apres ma mort
         Pour couvrir ton corps
         D’or et lumière” [i]
        
         Estava no seu auge, maravilhoso, sublime.
         Os últimos versos sempre guardam surpresas, e ao imprimir sua voz suave em: “Laisse-moi devenir” [ii], ouviu-se o som ensurdecedor de um tiro sendo disparado.
         A diva estava caída no chão. Todos correram para ampará-la, inclusive sua algoz.
         ___ Maurício me perdoa. Eu estava louca, desconfiada, segui você até aqui. Oh, meu Deus, o que foi que eu fiz? Não morra, não morra...
         A voz estava difícil de sair, a dor era lancinante.
         ___ Nancy, eu tentei, mas não consegui.
         ___ Maurício, por favor, não vá embora. Agora que ela sabe de tudo ainda podemos ficar juntos.
         A voz de André penetrava como que vinda de longe nos ouvidos de Maurício.
         ___ Je ne vais plus pleurer.[iii] Eu te amo, André, jamais deveria ter escondido o que eu era.
         Aos poucos os olhos foram se fechando, o silêncio tomou conta de tudo, seu corpo já não sentia mais dor, estava partindo, partia como deveria ter nascido.
        


        




[i] Te oferecerei
Pérolas de chuva
Vindas de um país
Onde não chove
Revolverei a terra
Muito além da minha morte
Para cobrir o teu corpo
De ouro e luz

[ii] Deixa-me existir
[iii]  Eu não vou chorar