Quando eu nasci parece que
minha mãe não se deu conta de que eu tinha uma fenda entre as pernas, parecia
um pouco decepcionada com a ausência de algo cilíndrico. A terceira gestação
lhe resultou em mais uma filha mulher e, para piorar, muito carente. Talvez,
para protestar contra o destino, ela me registrou com o nome de Helena, a
mulher mais bela do mundo.
Acredito que a ideia pode
não pode não ter sido apenas dela, meu pai era um amante dos livros e adorava
mitologia grega, mas o fato é que recebi esse nome e durante muito tempo achei
que era um peso. Eu chorava, como Helena chorou ao ser raptada por Teseu, ao
ser obrigada a se casar com Menelau e, por fim, ter sido separada de Páris, seu
único amor de verdade.
Enquanto
as lágrimas desciam, minha mãe lutava para criar três filhas em uma sociedade
machista. De gênio forte, ela nos levava com mãos de ferro.
Sempre
fui cândida por natureza, ou talvez por covardia mesmo, cresci assim,
infinitamente menina, aspirando ser mulher.
Estudei...
fui para a faculdade. Meu período de graduação foi como um limbo... sexualmente
falando. Estava quase fazendo voto de castidade quando finalmente conheci
alguém, um homem digno de estudo. O ego dele deveria ser pesquisado, dada a
infinidade do mesmo, mas não posso me queixar, ao menos tive experiências bem
interessantes.
Com
ele aprendi a não a me posicionar melhor... ah, que delícia são as metáforas. Na
verdade, aprendi quais posições me eram mais favoráveis. Meu amante não era
muito esperto, bastava fazer uma carinha de total adoração e ele achava que
estava no comando.
Findo
esse período, descobri o óbvio, que minha mãe não estava pronta para uma
filhinha tão dependente como eu. Logo se
fez entender dizendo “gentilmente” que me queria fora de casa.
Eu
passava metade do tempo achando a vida injusta comigo e a outra metade pensando
em que tipo de emprego poderia arrumar. Pensava em tudo, menos em exercer minha
profissão.
Havia me formado, com
louvor, em biblioteconomia. Meu pai teria adorado a minha profissão, já a toda
poderosa, minha mãe, achou que assim eu ficaria escondida, como tanto gostava
quando era criança.
Consegui um emprego em uma
biblioteca pequena, em um bairro próximo. O salário não era dos piores, dava
para pagar o conjugado para onde me mudara e comprar um vinho razoável.
Meu trabalho consistia
basicamente em guardar os livros que os visitantes deixavam nas mesas. Passava grandes
períodos lendo obras sobre psicologia e filosofia, tentando entender mais sobre
esses assuntos. Em geral, os mais procurados eram livros de autoajuda, acredito
que talvez a existência pesasse para muitas pessoas.
Alguns livros eu lia e
relia, foi assim com “Três ensaios sobre
a teoria da sexualidade” de Freud. Procurei-o na estante e não encontrei,
busquei a ficha e vi que um tal de Ricardo o havia levado e o devolveria dali a
dois dias. Acabei ficando curiosa sobre que tipo de pessoa ele era, quais
livros o interessavam. Busquei a ficha dele também e fiquei surpresa de ver sua
seleção: “O Relatório Kinsey”: “O Comportamento
Sexual da Mulher”, “Descobrindo o Prazer”, “Heterossexualidade”, o
“Kama Sutra” e o que mais me
surpreendeu “Jardim Perfumado” do
Xeque Omar Ibn Muhammad Nefzaui, escrito no século 16, obra na qual ele detalha
a intimidade sexual do casal e dá dicas para estimular e agradar a parceira.
Pensei
logo que esse Ricardo poderia ser três tipos de pessoas: ou era casado, ou um
grande cafajeste, ou ainda, um homem extremamente feio que alimentava suas
fantasias sexuais através da literatura.
Os
dias se passaram sem novidades e Ricardo apareceu na data marcada para a
devolução do livro. Observei-o abertamente, sem pudor. De pele queimada pelo
sol, olhos e cabelos castanhos, um pouco mais alto do que eu, e... sem aliança.
Deve
ser um cafajeste.
– pensei.
Cumprimentou-me
sem muito interesse, passeou pelas estantes, mas não pegou nenhum livro.
___
Não levará nada hoje? __ perguntei.
___
Não.
Tão lacônico, poderia dizer mais
alguma coisa.
Mas
ele se foi. Os poucos visitantes se foram também e eu fui para casa. Pensei em
ligar para a minha mãe, mas na mesma hora vi que não seria bom, eu e ela não
compartilhávamos de ideias afins, logo não conseguiríamos manter uma conversa
pacífica por mais de cinco minutos.
Estava
querendo notícias das minhas irmãs. A mais velha, Vera, havia se casado há um
tempo, mas nunca me ligava, nem a minha irmã do meio, Maria, que ainda morava
com minha mãe. Enfim, elas não entravam em contato e eu também não, era isso.
Acabei
vendo meu filme favorito: “O Piano”. Eu não o tirava do aparelho de DVD, não
cansava de ver e rever a saga de Ada McGrath. Acho que me identificava com ela,
sempre fui muito silenciosa, não conversava com a minha família, mas tinha e
tenho um fluxo de pensamento muito intenso, a comunicação comigo mesma poderia
soar como esnobismo, mas não era.
Quando
não via um filme, ficava simplesmente fazendo contas e acalentando o sonho de
ter uma livraria no futuro. Assim, duas semanas se passaram quase tranquilas,
digo quase porque recebi um telefonema de minha irmã mais velha dizendo que
minha mãe havia sido hospitalizada. Corri para lá.
Entrei
no hospital sem saber o que esperar, minhas irmãs estavam sentadas na recepção,
me abraçaram chorando, pensei que minha mãe estava morta.
Maria
me explicou o que acontecera, disse que nossa mãe estava na cozinha quando ela
ouviu um barulho forte e a encontrou caída no chão, ligou para a emergência do
hospital e mandaram uma ambulância, o estado dela era grave, as primeiras horas
eram cruciais.
Foram
momentos muito ruins, choramos e rezamos juntas. Éramos tão distantes uma das
outras, mas naquele momento, éramos uma só dor, uma só esperança. Horas depois
o médico nos informou que o quadro dela era gravíssimo, ela fora transferida
para a UTI.
Revezávamo-nos
no hospital em três turnos, a fim de estarmos perto e saber notícias o mais
rapidamente possível.
Quando
acordou, pudemos vê-la, uma de cada vez. Em meio a todos aqueles aparelhos
estava a minha mãe. Já não parecia mais tão forte, mas ainda impunha respeito.
Com voz fraca e respiração difícil, falou comigo.
___
Perdão. __ disse ela.
___
Perdão, mãe? Perdão pelo quê?
___
Perdão... filha... perdão. Tive que fazer você crescer.
Comecei
a chorar.
___
Deixe-me fa... falar... eu preciso. Sempre tive muito orgulho de você... filha
estudiosa, te amo.
___
Eu também te amo, mãe.
Ela
ficou em silêncio. Eu sabia que tinha que calar a boca, mas fazia muitos anos,
desde que eu era criança que não dizia aquilo para ela.
___
Minha joia preciosa, você era a filha que mais me preocupava, tão frágil, tão
meiga, tão desprotegida... eu não sabia como lidar com você, pensava na minha
menininha em um mundo difícil, em um mundo de homens... filha, você não poderia
ser assim para sempre...
Ela
estava tão cansada, se esforçava tanto para falar. A impressão que eu tinha era
de que as palavras eram como pedras e rolavam de um lado para o outro em sua
boca, saíam com muita dor.
___
Pedi para você ir embora de casa... chorei, filha, chorei muito... mas... você
... cresceu, ... conseguiu emprego, casa...
Fechou
os olhos, abriu em seguida.
___
Você já não é uma menininha, é uma mulher e ... tenho orgulho de você...
Naquele
momento seus olhos se fecharam e os aparelhos começaram a apitar, médicos ou
enfermeiros, não sei, entraram e eu tive que sair.
Maria
olhava para mim sem entender, atordoada. Abracei-a com força.
Uma
mulher de branco veio falar conosco, se identificou como Lúcia, Assistente
Social. Nossa mãe estava morta, não resistira a mais um infarto.
Choramos...
O funeral foi singelo. Fiquei até o último momento, até a
última pá de terra ser jogada. Fui à casa de minha mãe, que, assim como ela,
parecia dormir em paz. Minhas irmãs pareciam abatidas, mas prontas para
discutir o que ficaria para quem. Mamãe gostava de espaço, era despojada, não era
afeita a colecionar nada. Olhei em volta e resolvi ficar com um vitral, de
alguma maneira ele me lembrava de minha mãe, de mim, me deixava mais próxima
dela. A disposição das cores era maravilhosa, o marrom, contrastando com o
amarelo forte das pétalas, seguido de todo um colorido da natureza e da
borboleta, que tão gentilmente encostava-se ao girassol. Todos aqueles
elementos celebravam a vida, a tudo o que eu deveria me agarrar naquele momento
de tanta dor.
Minha mãe sempre fora organizada financeiramente falando,
havia feito um seguro e deixado partes iguais para cada uma de nós. Foi Vera
quem nos contou, disse que o advogado entraria em contato para falar sobre o
seguro, o inventário da casa e sua posterior venda.
Vera sempre fora muito prática, mas não imaginava que fosse
tanto.
Pedi para ficar afastada do trabalho por um tempo. Fiquei
trancada no apartamento até o dia em que me descobri deitada na cama em posição
fetal, queria desesperadamente voltar ao útero de minha mãe e lá ficar, mas não
consegui. Com dificuldade, forcei minha passagem de volta ao mundo e renasci,
chorando e clamando por ar.
Ele, o vitral, estava ali. Foi o primeiro objeto que
avistei... Tantas cores quase feriram meus olhos, mas iluminaram minh’alma,
senti a força vital daquela planta percorrendo minhas veias. Embora estivesse
vendo as cores, elas estavam opacas, não sabia se meus olhos estavam turvos ou
se não havia realmente acordado.
Olhei pela janela e vi que já era noite, via-o daquela
maneira por causa da luz difusa do poste da rua. Estava viva, viva, mas com uma
parte faltando em mim.
Desconfiei
da minha condição de reclusa e imaginei que meu corpo necessitava de um banho.
Fui para a rua, sentei em um restaurante
qualquer e pedi um jantar. O contato do alimento com a minha língua foi
extasiante. Dias sem comer fizeram isso. Estava tudo delicioso, comi e ainda
pedi sobremesa. Em um impulso pedi para cumprimentar quem cozinhara aquelas
maravilhas.
Ricardo
era o cozinheiro. Parabenizei-o e ele sorriu para mim. Já era tarde e já estava
terminando seu turno de trabalho, convidou-me para tomar uma taça de vinho, ali
mesmo.
Conversamos
bastante. Meus conhecimentos sobre culinária eram e são parcos, mas fiquei
encantada com a palestra dele sobre temperos, ervas e carnes.
___
Sua conversa é muito agradável.__ disse ele.
___
Obrigada. Falar sobre comida com o estômago cheio é melhor do que com ele
vazio, parece que se entende melhor o que está sendo dito.
___
Você tem um senso de humor raro.
___
Rir é sempre muito bom.
___
Mas você não está sorrindo.
___ Está tarde, preciso
ir.
Quando
tentei me levantar, fiquei completamente tonta, Ricardo me amparou.
___
Acho que você está um pouco “alta”.
Meus
olhos se encheram de lágrimas que queimavam em minhas órbitas.
___
Desculpe, Ricardo, não é nada com você. Não quero falar sobre isso.
___
Não precisa falar, vou te levar para casa.
Depois
pegar o meu endereço, chamou um táxi e me levou para casa. Não me lembro bem
daquele que seria o primeiro dos muitos dias em companhia dele.
Ricardo
foi muito atencioso, me colocou na cama de roupa e tudo, trancou a porta e
jogou a chave por baixo quando saiu. Acordei com uma tremenda dor de cabeça.
Por volta do meio dia, a campainha tocou. Sem coragem de me levantar, deixei
que continuasse soando, mas acabei abrindo a porta. Era ele, com pão fresco.
___
Oi.
___
Olá, moça. Imaginei que não havia acordado ainda, era bem tarde a hora em que a
deixei aqui.
___
Entre. Tenho muito que lhe agradecer. Olha... ontem... aconteceu uma coisa...
___
Ontem você disse que não queria falar sobre isso, acho melhor deixar assim, por
enquanto.
___
Obrigada, Ricardo, muito obrigada.
___
Não precisa me agradecer, mas há algo que pode fazer por mim, e antes que
pergunte, vou logo dizendo que é um café.
Ri
muito, ri alto, pela primeira vez desde que voltei à vida.
Dali
em diante, Ricardo estava sempre em contato comigo. Disse que era separado, que
tinha dois filhos e uma ex-mulher. Os meninos viviam com ela e não o perdoavam
por ele ter saído de casa, o pai os via de quinze em quinze dias, como manda a
lei, mas eles quase não conversavam com ele, respondiam as perguntas com
monossílabos. Ricardo entendia essa reação, embora sofresse com isso.
Um
dia, acabei contando para o meu mais novo amigo sobre a morte de minha mãe. Senti
confiança para dar esse passo, a dor ainda era muito grande, me sentia
extremamente culpada por não ter dito na minha adolescência o quanto a amava, o
quanto queria parecer com ela, ter a força que ela possuía, seu caráter... a
vitalidade daquela mulher que para mim, era a melhor mãe do mundo.
Ricardo
foi me mostrando que eu não tinha culpa, que alguns pais estabelecem relações
conturbadas com os filhos, mas que nem por isso, deixam de saber que os amamos.
Foi reconfortante pensar assim.
Toda
essa proximidade com Ricardo acabou mexendo comigo. Fazíamos jantares só para
nós dois nos dias de folga dele, bebíamos vinho e ficávamos levemente
embriagados juntos.
Já
era bem tarde quando ele disse que iria embora, pedi que ficasse. Quando o
toquei, não resisti, me aproximei e o beijei, ao que fui prontamente
respondida. Fomos para o quarto, loucos de paixão, mas rimos um da cara do
outro quando vimos o nosso estado de embriaguez, sabíamos que não iria acontecer
nada.
___
Helena, foi real? Esse beijo foi real, ou você está carente?
___
Foi real, eu gosto de você.
___
Então não vou me preocupar, ainda temos amanhã.
___
Ainda temos amanhã.
Beijamo-nos
e dormimos abraçados.
A
manhã seguinte foi repleta de amor. Ricardo acordou-me com beijinhos, pequenas
mordidas e toques insinuantes. Fiquei tensa, imaginando como seria fazer amor
com um homem que havia lido tantos livros sobre sexo.
___
Relaxa. __ disse ele com voz suave __ Relaxa.
Como
eu continuava tensa, ele me puxou da cama, fomos para o chuveiro. Ele ligou a água
quente, lavou meu rosto, ensaboou minhas costas, minha coxa, minhas partes
íntimas. A água relaxava minha musculatura e Ricardo intumescia minhas
entranhas. Por fim, ele desligou chuveiro, tocou-me mais uma vez e, sem aviso,
entrou em mim. Contive a respiração e esperei para ver o que sentia, meu corpo
respondeu aos movimentos desconexos dele. Eu jamais havia feito amor assim, sem
palavras, nos comunicávamos pelos nossos gemidos. Senti as pernas enfraquecerem
e senti meu corpo se contraindo e relaxando... contraindo e relaxando, sabia
que estava tendo um orgasmo. Ricardo também sabia e não parou por ali, saiu de
dentro de mim e deixou que alguns segundos se passassem, se abaixou e me
beijou, me mordeu, me prendeu em sua boca, tive outro orgasmo.
Não imaginava que uma
relação pudesse ser daquela maneira. Ainda ereto, ele me penetrou e gozou. Sem
nos falar, novamente o chuveiro foi ligado e tomamos banho.
Dali em diante, não nos afastávamos,
relutávamos em deixar a cama de manhã para ir trabalhar, em voltarmos para
nossas casas.
___ Helena, detesto ter
que me afastar de você. Quando tenho que ir para casa e te deixar aqui fico
mal, não durmo direito... ah, você sabe porque já me disse que sente a mesma
coisa.
Dessa vez não
interromperia, sabia o quanto o tempo era frágil e fugidio.
___ Acho que poderemos
morar juntos.
Pulei no colo do Ricardo,
cobri-o de beijos, estava felicíssima. Como o meu apartamento conseguia ser um
pouco maior do que o dele, Ricardo foi quem se mudou. Tudo parecia perfeito,
mas não era bem assim, os filhos dele não aceitavam que o pai estivesse com
outra mulher e no início se recusaram a vê-lo, foi um período muito difícil
para nós dois.
___ Não posso me render a
eles... amo você Helena... os amo também, é complicado.
___ Ricardo, minha mãe me
ensinou a crescer, eles precisam crescer. Dê tempo ao tempo.
Minhas palavras se
revelaram sábias. Depois de uns meses, a saudade foi maior, eles pediram para o
pai buscá-los, mas se recusaram terminantemente a me conhecer.
Cada dia era um dia diferente,
comíamos em horários alternativos, namorávamos pela rua quando ele saía do
trabalho, líamos os mesmos livros, porque como eu era a bibliotecária, podíamos
fazer isso, e ríamos de tudo.
___ Entrega para o senhor
Ricardo Peçanha.
___ Pode ir até a cozinha,
é só seguir em frente. __ disse o gerente do restaurante.
Ricardo me contou que
ficou surpreso ao receber uma caixa sem remetente, chegou a brincar com os
amigos dizendo que era uma bomba, o que não deixava de ser verdade. Mandei pelo
correio um par de sapatinhos brancos de bebê, foi a maneira que eu encontrei de
contar que estava grávida. Minhas regras atrasaram e fiquei desconfiada, fui ao
médico e ele confirmou, estava grávida de um mês, aproximadamente.
Tive medo de contar, nunca
falamos sobre ter filhos, ele já tinha dois, poderia pensar que eu fizera de
propósito. Por conta disso acabei guardando o segredo, mas não poderia esperar
demais e piorar tudo.
Ricardo ligou para o meu
trabalho e disse apenas que recebeu a encomenda, que conversaríamos quando
chegasse a casa. Fiquei tão apreensiva que senti enjoos fortes e vomitei todo o
almoço.
Quando ele chegou, trouxe
consigo um buquê de lírios rosa. Misturando nossas lágrimas e nossos sorrisos,
nos beijamos. Ele estava muito feliz, confessou que não havia pensado em ter
mais filhos, embora também não tivesse pensado em casar de novo, disse que
dessa vez seria tudo diferente.
Alugamos um modesto
apartamento de dois quartos, afinal, a família estava aumentando. Marcamos logo
as consultas do pré-natal. Tudo ia bem com a minha gravidez, exceto pelas
náuseas e tonteiras.
Preferi não saber o sexo
do bebê, mas Ricardo não gostou muito da ideia, queria saber logo, pintar o
quarto, escolher o nome, comprar roupinhas, diante de tão bem vindo entusiasmo,
não pude negar-lhe isso.
Na vigésima semana de
gestação fizemos o ultrassom e soubemos que teríamos uma menina. Perguntas
começaram a se formar em minha cabeça: “Será que ela seria como eu?” “Teria de
fazê-la crescer como minha mãe fez comigo?” “O mundo seria cruel com ela?”
“Como protegê-la?”.
Conversei com Ricardo
sobre as minhas dúvidas e ele disse que isso era natural, preocupação de mãe.
Parecíamos duas crianças quando pintamos o
quarto, nos sujamos todos de tinta, resolvemos que deveria ser amarelo, cor de
sucesso, caso, futuramente, ela quisesse pintar de rosa, seria uma escolha
dela. A cortina era maravilhosa, possuía compartimentos para colocar ursinhos
de pelúcia dentro. Ah, que dias maravilhosos...
As roupinhas da pequena
eram lindas, com flores, com bichinhos, com tudo que se pudesse imaginar.
Um dia Ricardo chegou com
várias bolsas de lojas infantis. Minha barriga estava enorme e eu me sentia
particularmente indisposta aquele momento.
___ Amor, você trouxe o
shopping todo para casa?
___ Não. Estive pensando
com que roupas a baixinha vai às festas? Vocês mulheres adoram se vestir bem,
por isso comprei uns vestidos de noite, uns sapatinhos, meia calça... tudo isso
que meninas precisam.
___ Hum... isso se você a
deixar sair, caso não fique morrendo de ciúmes.
___ Que nada, vou ficar na
porta da festa olhando com quem ela conversa.
___ Conversar?! Ah,
Ricardo, você é maravilhoso. Eu te amo muito.
___ Eu também as amo
demais.
Isso já faz tanto tempo,
que talvez a memória esteja me traindo e não tenha sido exatamente assim...
Faltavam apenas duas
semanas para o parto, eu e Ricardo não havíamos chegado a um consenso sobre o
nome, eu queria algo simples, como Nina, já ele queria algo grandioso como
Joana. Pensei logo que esse nome poderia ser pesado para ela, com uma carga
histórica muito grande, não queria que ela se sentisse na obrigação de repetir
os feitos da francesa Joana D’Arc.
As árvores estavam todas
floridas, a primavera prometia ser maravilhosa aquele ano.
___ Já sei! __ disse eu__
Já sei! O nome dela vai ser Yasmim.
___ Yasmim... Yasmim. É um
lindo nome, combina com a data de nascimento dela, que segundo o doutor
Anderson, deve ser entre a primeira e a segunda semana de outubro, em plena
primavera. Gostei!
Pesquisei o significado do
nome e descobri que Yasmim tinha origem no persa yasamen que significa "jasmim",
também encontrado no árabe com a forma jasamin.
A nossa flor perfumada
estava chegando.
Como um relógio, no dia
dez de outubro, minha bolsa estourou e comecei a sentir as contrações. Fiquei
muito nervosa, mas Ricardo estava tranquilo, era marinheiro de terceira viagem.
Quando as contrações tiveram menos espaço entre si, fomos para o hospital.
Ainda era muito cedo, o sol não havia saído de todo, mas as luzes já começavam
a colorir o céu.
Depois de cinco horas em
trabalho de parto, finalmente minha menininha estava saindo.
Os médicos diziam para eu
fazer força e procurei atende-los, mas a impressão que eu tinha era a de que
estava sendo partida ao meio. Eu respirava, fazia força para baixo, respirava e
me esforçava. O doutor Anderson pediu que chamassem mais outra doutora, não sei
qual a especialidade dela. A mão de Ricardo estava suada e pegajosa, ele estava
nervoso, vi em seus olhos que algo não ia bem.
Antes que eu desmaiasse,
vi ainda a correria deles e mergulhei no escuro.
Branco,
parece tão estranho. Pensei. As paredes da minha casa são bege.
___
Oi. __ a voz do Ricardo era apenas um sussurro.
___
Oi. __ respondi.
___
Como está se sentindo?
___
Com sono.
___
Deve ser os efeitos dos remédios.
___
Que remédios?
___
Helena, acho melhor você descansar mais um pouco, vou chamar o seu médico.
___
Onde está a minha filha, Ricardo? Onde está a Yasmim?
Ao
invés de responder, ele apenas afagou os meus cabelos e fechou os olhos.
Comecei
a urrar como um animal ferido.
___
Onde está a minha filha?__ gritei.
Tentei
me levantar, mas fui contida por meu marido.
___
Você ainda está muito fraca, amor... tente se conter.
___
Eu vou achar minha filha.
Imediatamente
duas enfermeiras entraram e me espetaram com uma agulha. Mergulhei de novo no
escuro, mas dessa vez minha mãe estava lá, me pegou no colo e me abraçou.
Estranhamente me senti confortada naquele abraço.
Quando
acordei, Ricardo não estava do meu lado, dessa vez era uma enfermeira.
Perguntei com dificuldade onde ele estava. Ele havia saído um instante para
tomar um café.
Chamado
pela funcionária, Ricardo veio acompanhado do doutor Anderson, que fizera o meu
parto.
___
Doutor, pode me explicar por que me colocaram para dormir? Onde está o meu
bebê? Há quanto tempo estou aqui?
___
Calma, Helena, ele já vai te explicar. Deixe o médico falar.
___
Helena, entendo a sua ansiedade, mas você vai ter que ficar calma.
Vi
nos olhos de Ricardo que algo muito sério havia ocorrido.
___
A sua gestação foi normal, a formação fetal também. O bebê virou no tempo
certo, tudo estava perfeito, mas na hora do parto houve uma complicação
raríssima: ao invés de coroar, de aparecer a cabeça do bebê primeiro, o que
apareceu foi o ombro, isso ocorre num nascimento em duzentos. A apresentação do
ombro é extremamente perigosa, tivemos que forçar o nascimento a uma posição
que chamamos de nascimento falhado. Era muito tarde para tentar uma cesariana,
poderíamos perder você e ela. Helena, seu útero se rompeu, sua filha acabou
morrendo e você teve uma hemorragia gravíssima, tivemos que estanca-la e fazer
com que você passasse por duas transfusões de sangue. Infelizmente você ficou
em coma por vários dias.
Palavras
e mais palavras que se amontoavam como lixo na minha cabeça. Ouvi apenas a
palavra morte... morte. Yasmim estava morta, meu pequeno sonho, meu pedacinho
de nuvem não chegaria mais.
Quando
o desespero é muito grande, não há olhos para enxerguem a esperança. Havia
perdido boa parte da minha vida, perdi minha mãe, perdi o elo com minhas
irmãs... havia perdido muito para uma vida ainda tão mal vivida de emoções.
Em meu sono conturbado
questionava Deus e tudo o mais, queria agredi-lo de alguma forma para que ele
me ouvisse, mas minha fé, a pequena chama que ainda estava acesa dentro de mim
impediu que fizesse isso, ainda havia força dentro de mim, embora não quisesse
que ela estivesse lá.
Recebi
alta não sei quanto tempo depois. Sentia como se meu corpo fosse um objeto,
tirado de um lugar e colocado em outro que estranhamente não me dizia nada. Meu
antigo quarto parecia pertencer a outra vida, a uma vida que eu não tinha
memória, não sabia mais onde estava nada, como se nada mais me pertencesse, mas
a chama ainda me prendia...
Minha
cama parecia tão aconchegante quanto um casulo, ali me sentia confortável,
protegida, alienada. Ricardo falava coisas que eu não ouvia, dizia algo que
pertencia a vida de outra pessoa.
___
Levante daí. Volte ao trabalho. Reaja.
Todos
os dias, as mesmas palavras:
___
Levante daí. Volte ao trabalho. Reaja.
Ele
estava tão longe, tão distante que eu não tinha forças para voltar.
___
Amor, levante daí. Volte ao trabalho. Reaja.
Houve
dias em que pensei que o perderia.
___
Levante daí. Volte ao trabalho. Reaja... por favor, por favor...
Sabia
que lágrimas deviam estar rolando dos olhos dele, mas não podia olha-lo, não
sabia como fazer isso.
Será
que ela seria parecida com ele? Será que ela teria o gênio dele? Os dentinhos,
o sorriso, a inteligência, seria a mesma que a dele? Tantas perguntas... o tempo
jamais me traria as respostas... não havia como isso acontecer... Ela não
cresceria... não sorriria. Ai... ela não existia mais.
Quando
estava só, criava e recriava seu nascimento: caso eu tivesse optado por cesariana,
ela teria sobrevivido, ou teria sido me tirada de qualquer maneira? Deveria ter
me cuidado mais e ter engravidado depois? Será que não seria um parto mais
simples?
Minha
mente era uma máquina de reprises. Eu conseguia me aproximar e me afastar de
minha filha, conseguia imaginar seu singelo sepultamento a que não conseguira
ir porque estava em coma.
Até
nisso eu falhei com você, filha, não me despedi.
Em
pouco tempo minha barriga murchou, não havia sinais de que ali havia existido
vida, meu ventre estava seco e oco, como minhas lembranças.
Acabei
não voltando mais ao trabalho, fui diagnosticada como tendo uma profunda
depressão, não sabiam dizer ao certo se fora causada por conta do parto
difícil, pela hemorragia ou pelo trauma que havia passado. Pouco me importava o
que causara aquilo, o importante é que eu passava horas deitada, com as
cortinas fechadas, sem saber se era dia ou noite.
Ricardo
me tirava da cama e me colocava sentada perto da janela da sala, falava comigo
e parecia não se importar com o meu silêncio, por minha vez, eu não me
incomodava com seu falatório, apenas o olhava e tentava fazer parecer que o
compreendia.
Certo
dia chegou acompanhado de uma mulher, apresentou-me a senhora que seria minha
acompanhante durante o período em que estava trabalhando. Ele temia que eu
tentasse contra minha própria vida, mas não havia com o que se preocupar, já
não havia vida em mim.
___
Bom dia, dona Helena. Meu nome é Josefa, a senhora pode contar comigo para o
que precisar.
Não
respondi, não queria falar com ela, não queria falar com ninguém.
Devo
ter perdido a voz, já não devo mais ser capaz de falar.
A
mulher ligava a televisão e me colocava para assistir. Nunca gostei de novelas,
achava uma grande perda de tempo. As histórias eram bem escritas, bem
estruturadas para enganar as massas mais empobrecidas da população, com
heroínas ricas que sofriam pelo rapaz pobre, ou jovens pobres que mudavam de
condição de vida no final da trama. Ela não sabia, coitada, que o silêncio ou a
TV ligada para mim davam no mesmo.
Dona
Josefa não parava de mexer em mim, fazia massagens nas minhas costas com óleos
aromáticos, colocava camisola em mim antes do meu marido chegar e penteava meus
cabelos todos os dias.
Sempre
fui magra, mas meu peso diminuiu muito. Ricardo tentou de tudo, mas eu esperava
apenas o momento de me unir a minha filha.
Exausto,
ele deitava na nossa cama, ao meu lado e dizia que eu era linda, tocava meu
corpo magro embaixo dos lençóis e falava como minha pele era macia. Eu queria
poder falar para ele que me deixasse, que não me dissesse aquelas coisas...
___
Tá sentindo a minha mão? Lembra-se da primeira vez que dormimos juntos, amor?
Não fizemos nada, mas dormimos de mãos dadas.
Dois
meses se passaram sem que meu estado melhorasse, ele estava bastante abatido,
tinha que cuidar de mim durante o dia e trabalhar no restaurante à noite.
Minhas
irmãs apareceram na nossa casa. Maria continuava a mesma, simples e tímida, já
Vera era toda felicidade em sua segunda gestação. A imagem dela piorou meu
estado de ânimo. Minha gentil acompanhante pediu que elas viessem num outro
momento, disse que eu estava um pouco cansada.
Vera sabia muito bem do
que havia acontecido comigo. As sábias palavras de dona Josefa aliviaram a ruga
de preocupação que estava entre seus olhos.
Maria se ofereceu para
ficar comigo nos dias de folga da minha acompanhante, mas ela declinou, disse
que trabalhava poucas horas e não se incomodava de não tirar folga.
Embora estivesse alheada
aos cuidados com a casa, não pude deixar de perceber que Ricardo desfez o
quarto da nossa menina. Pintou as paredes de bege, como o restante da casa e
fez um pequeno escritório, com uma estante de livros e a mesa do computador. Fiquei
triste, mas aliviada por não ter que mexer em nada.
Dona Josefa, acredito eu,
deve ter-lhe dito algo sobre o meu estado, porque ele pediu licença do trabalho
para ficar comigo. Insistia todos os dias para que eu comesse. Meu corpo já
estava tão fraco que eu não me levantava mais, nem para ir sentar na sala... os
medicamentos não estavam reagindo em mim.
Meus fiéis guardiões me
levavam para a rua em uma cadeira de rodas, todos os dias, dia após dia, depois
eu me deitava na cama e lá ficava, não sentia calor nem frio.
Certo dia, Ricardo veio me
trazer o almoço. Tentei dizer que não queria, mas ele me convenceu a comer
algumas pequenas colheradas. Era um delicioso tacacá, mas senti que estava um
pouco apimentado, isso mais o jambu, erva típica da região do norte do Brasil, causaram
curiosos efeitos sobre mim. A pimenta me deixou com muito calor, já o jambu
deixou meus lábios ligeiramente dormentes.
Era impossível voltar para
cama com o meu corpo em chamas, como tinha a sensação de que estava. Tive que
sair do quarto, e por vontade própria.
___ Muito bem, senhor
Ricardo, ela está reagindo. Vai dar tudo certo.
___ Tomara, dona Josefa.
Não aguento mais ver minha mulher assim.
Na noite daquele dia,
minha refeição consistiu de um lanche simples, uma torrada com chá de hortelã.
Depois de todo aquele calor, o toque refrescante daquelas folhas verdes foi
maravilhoso.
Mas, na manhã seguinte, lá
estava eu de novo prostrada na cama. Fui agraciada com um mingau de maisena com
canela. Novamente aquele calor abrasador, meu rosto ficou rosado e parti para o
meu passeio matinal.
Ouvi minha acompanhante e
Ricardo cochichando algo, mas não sabia o que era.
___ A pele dela estava
começando a ficar amarelada, mas agora está vermelhinha. Com um pouco de sol
vai ter uma aparência mais saudável.
___ Dona Josefa, a senhora
tem me ajudado muito, está se desdobrando em mil. Sei que não combinei de a
senhora ficar durante o dia também, temos que rever o seu salário.
___ Seu Ricardo, nem pense
nisso, gosto muito de ficar com ela. Como o senhor sabe, não tenho família,
fico em casa quase que o tempo todo sozinha, aqui tenho a companhia dela e do
senhor, que me ensina coisas maravilhosas.
___ Obrigada, dona Josefa,
muito obrigada.
Sempre gostamos de nos
alimentar bem, nossa dieta era rica em frutas, mas nunca tive que comer tantas.
Meu café da manhã veio em uma bandeja: amoras, morangos, framboesas e jambo,
tudo arrumadinho em uma tigela e iogurte na outra.
___ Quantas frutas! __
consegui dizer com voz fraca.
___ A senhora não deve
reclamar, frutas são muito fáceis de comer. __ disse minha acompanhante.
Algumas pessoas acreditam
que frutas vermelhas são as frutas da felicidade. Para os romanos, o morango
combatia a melancolia. O certo é que eu comi, com ela ali me olhando.
Mas nem tudo foi tão fácil
assim, por várias vezes as pequenas vitórias alcançadas eles iam por água abaixo
de um dia para o outro.
___ Já chega, porque não
me deixam em paz... Não quero mais comer nada.
Passava o dia todo
trancada em mim mesma.
Com uma estranha
combinação de alimentos que me causavam calor, outros que refrescavam e outros
que simplesmente acalmavam, ele foi lidando com a situação.
Meu humor era como a alta
e baixa das marés. Havia dias em que eu acordava tranquila, já outros acordava
agitada e nervosa. Em um dia de especial nervosismo gritei com Ricardo e dona
Josefa, expulsei-os do meu quarto, mas meu marido com lágrimas nos olhos me
disse uma grande verdade.
___ Acha mesmo que só você
está sofrendo, Helena? Só você perdeu uma filha? Por favor, seja um pouco menos
egoísta! Eu também estou sofrendo! Eu também a queria aqui ao nosso lado! Mas
estou lutando, enquanto você fica aí chorando e se lamentando. Pense nisso,
porque a dor é nossa... nossa...
Chorei durante todo o dia.
Ricardo
preparou o meu jantar, mas não foi me buscar como sempre fazia, nem foi ao
quarto levar. Achei muito estranho.
Jamais
havia experimentado um salmão tão gostoso. Creio que era feito no forno com
legumes variados. Cada alimento tinha um sabor inesquecível, o doce da cenoura
fora acentuado pelo mel, os outros legumes receberam um toque especial do
alecrim, que historicamente tem sido usado para tratar ansiedades, melancolia,
depressão e muitas outras enfermidades.
O alho em pedaços grandes
não estava picante, aparentemente regado a azeite e no forno ele ficou com
outro sabor. A decoração do prato também não me passou despercebida, ramos de
louro entrelaçados davam um fino acabamento.
O recado era claro, ele
queria que eu vencesse! Ramos de louro significam vitória, era o símbolo de
Apolo, que na mitologia grega, era o deus da Luz.
Ricardo sempre teve um
jeito muito especial de se comunicar comigo, ou ele deixava uma pétala de rosa
em meu travesseiro ou apenas um molho de manjerona na pia da cozinha, quando
queria se desculpar. O chá da manjerona tem propriedades calmantes.
Com uma batida forte e
seca, sem o sorriso costumeiro, dona Josefa trouxe minha sobremesa. Em um prato
negro, que eu nunca havia visto, estavam dispostos vários pedaços de carambola.
O amarelo da fruta em contraste
com o prato foi quase chocante, a vida que eu estava buscando era o negro, a
solidão, a vida ao lado do meu marido, era cheia de luz e alegrias.
Entendi.
Ajeitei meus cabelos da
melhor forma possível, coloquei um penhoar por cima da camisola a fim de que
minha magreza não ficasse tão aparente e fui para a sala, em paços vacilantes.
Dona Josefa e Ricardo
estavam sentados a mesa, tomando um chá, mudos, me olhando.
___ Preciso falar com
vocês.
___ Fale, querida. Estamos
aqui. __ respondeu Ricardo.
___ Ricardo, eu nunca vou
poder te agradecer por tudo que você fez por mim. E a senhora, dona Josefa,
também ajudou muito na minha recuperação, também foi incansável nessa luta.
Obrigada. Vocês dois são maravilhosos.
Eles me abraçaram e
sorriram para mim.
Dali para frente, dona
Josefa continuou trabalhando conosco, cuidando da casa enquanto eu me
recuperava definitivamente.
Quando me senti forte
novamente, comuniquei a Ricardo minha vontade de voltar a trabalhar, ele adorou
a ideia, mas tive de admitir que não sabia por onde começar.
___ Ricardo, na verdade eu
tenho um plano, uma ideia de recomeço.
___ Um plano, então
trata-se de uma guerra! Temos que convocar a tropa.
Ri da brincadeira dele.
___ Amor, houve momentos
em que achei que nunca mais iria ouvir nem sua voz, nem seu sorriso.
___ Esses momentos já vão
muito, mas muito longe. Mas, vamos ao meu plano. Querido, quero montar uma
pequena editora.
___ Helena, sei que você
tem aquela herança que sua mãe deixou, mas... o mercado editorial anda meio
fraco, hoje em dia as pessoas só pensam em livros digitais. Pode ser um mau
negócio.
___ Não penso assim. Há
muitos jovens escritores que estão em busca de uma chance. Os livros podem ser
publicados em sistema de parceria. Caso tenhamos um espaço grande podemos ter a
livraria no andar de baixo, na qual podemos publicar as obras de vários
escritores e a editora propriamente dita no andar de cima.
___ Pensando nisso, pode
ser, mas procure um advogado.
Nossa rotina finalmente
havia voltado ao normal. Eu estava empenhada no meu mais novo projeto e Ricardo
voltara ao trabalho e as visitas aos filhos, que mesmo com o passar do tempo se
recusavam a se aproximar de mim.
Encontrei um sobrado
antigo que se encaixava muito bem nos meus propósitos. Ele precisava de alguns
reparos, mas deu para fazer tudo com o dinheiro que herdei.
A editora e a livraria
foram legalizadas e eu comecei a trabalhar. Meu marido participou ativamente do
meu sonho, adorou o charme e o toque que eu dei a tudo, dizia que eu era uma
fada, um mecenas da literatura na versão feminina.
Como eu havia previsto,
alguns pequenos escritores me procuraram e em breve a vitrine estava cheia de
livros. Como a publicação era em sistema de parceria, o autor entrava com uma
parte e eu com a outra, as obras não eram muito caras e, portanto, acessíveis
aos leitores.
Depois de dezesseis anos
no mercado editorial, meu nome era conhecido e respeitado.
___ Helena, andei
trabalhando em uma coisinha aqui no escritório... escrevi umas linhas...
Deixei-o falar. Percebia
que quando chegava do trabalho não ia se deitar logo em seguida. Tomava banho,
preparava um chá e se trancava no escritório. Anos de casada me ensinaram a
respeitar a privacidade do meu marido, jamais me senti compelida a descobrir o
seu segredo.
A “coisinha” na qual ele
estava trabalhando era uma linda obra que contava a nossa história, a história
de como ele me salvou.
___“Curando a alma pelos
alimentos: uma história de amor” por
Ricardo Peçanha. __ li em voz alta.
___ Olha, se não estiver
bom, não precisa publicar... eu fico feliz só de você ler.
A humildade daquele homem,
que foi um leão no momento em que eu mais precisei, me emocionou.
Li o livro todo e fiquei
encantada com as pesquisas que ele fez sobre alimentos que combatiam a
depressão. Muitos deles fizeram parte da minha alimentação. Ricardo foi
minucioso em seu relato.
No prefácio do livro ele
mencionou algumas obras que ele lera anos antes, quando nos conhecemos: livros
eróticos e pesquisas sobre sexo. Segundo ele, a sensação de prazer alcançada
durante o ato sexual também pode ser obtida através dos alimentos. Muitos o
criticariam, mas outros o entenderiam, era um risco que se deveria correr.
Fiquei tão sem jeito
quando fizemos amor pela primeira vez, achava que ele usaria todo aquele
conhecimento comigo e que talvez não conseguisse acompanha-lo.
Por outro lado, finalmente
entendi os calores que eu sentia depois das refeições: ele usava os chamados
alimentos termogênicos, tais alimentos aceleram o metabolismo, por isso eu não
conseguia ficar na cama. O frescor vinha dos chás que eu tomava. A estratégia
dele era me aquecer e resfriar. Trabalhando o quente e o frio eu jamais
conseguiria ficar na minha zona de conforto, que era a cama.
A vida nos oferece
naturalmente as sensações, mas eu estava fechada para isso, então ele encontrou
uma maneira de mexer comigo, foi brilhante.
O livro dele não só foi
publicado, como fizemos o lançamento na livraria. Vários amigos foram e pediram
autógrafo.
Artur e Davi, meus enteados, compareceram e
foram polidos comigo, mas deixaram transparecer a emoção que estavam sentindo
pelo sucesso do pai.
Dona Josefa estava lá, com
seu exemplar na mão na fila de autógrafos, toda orgulhosa por ter sido citada e
homenageada, como não poderia deixar de ser.
A noite foi maravilhosa.
Ricardo estava exultante, ficou felicíssimo
quando mostrei a garrafa de espumante que havia guardado para nós. Há muito que
havíamos diminuído a bebida, mas aquele dia era especial.
___ Helena, estou tão
feliz, que não preciso de mais nada nessa vida.
Fiquei arrepiada e pedi
que nunca mais dissesse aquilo, afinal, ainda precisávamos muito um do outro.
Deveria ter percebido
naquela noite que minhas provações ainda não tinham terminado. Ah, mas a
felicidade embriaga, tolda os sentidos e nos faz fortes, nos sentimos acima de
qualquer dor ou doença.
O diagnóstico não demorou
a chegar. Ricardo estava com câncer.
Conversávamos
muito quando ele não estava se sentindo cansado ou com dor.
___
Helena.
Sufoquei
o soluço que tentava trazer lágrimas aos meus olhos.
___
Oi, amor.
___
Tive mais do imaginei que teria nessa vida. Estou feliz... Por favor, não
chore, não estou com medo. Você já passou por tantas coisas, vai passar por
essa também.
___
Passei por todas essas coisas porque você estava ao meu lado, agora vem me
dizer que vou conseguir passar sozinha. Não, amor...
___
Helena, seu nome é tão lindo... significa tocha, luz luminosa, é isso o que
você foi na minha vida.
___
Eu sou ainda, amor, eu sou sua tocha.
___
Eu sei, é por isso que a sua lembrança vai iluminar meu caminho durante a minha
passagem. Meu amor, não deixe que a dor a domine como em tantos outros
momentos, lute, Helena, com todas as suas forças, lute por mim, por você... meu
amor... lute por nossa filha.
___
Ricardo...
___
Por Yasmim, por ela. O mundo não viu a mulher que ela poderia se tornar, mas
viu a mulher que você se tornou por causa dela. Por nós, amor, por nós... sua
família.
Comecei
as linhas mal traçadas da minha existência chorando e continuei chorando. Meu
grande amor estava ali, diante de mim, perdendo a vida a cada minuto e pedindo
que eu vivesse.
As
horas finais foram passadas com Artur, Davi e eu. No fim, Ricardo pediu para
ser sedado, as dores eram fortes demais para ele.
Faleceu.
Sempre
soube que ele queria ser cremado e providenciei para que assim fosse.
Em
uma pequena caixinha de prata, que ele me deu de presente no nosso aniversário
de dez anos de casados, pedi que fosse guardada uma pequena parte de suas
cinzas, já que deixei a urna para seus filhos e parentes colocarem no jazigo da
família deles.
Fui
para casa... tinha medo de mim. Posicionei uma cadeira no meio da sala, de
frente para o vitral que fora de minha mãe.
O que farei agora?
O que farei agora?
O que farei agora?
Esse pensamento não me
saía da cabeça, mas as cores refletidas na minha pele diziam:
___ Viver! Viver! Viver!
Foi na pequena lápide de
minha filha que despejei aquele pedacinho de Ricardo que ficara comigo, agora
ela o teria também.
Ali, naquele lugar sagrado
que disse aos meus amores que sobreviveria.
E assim eu fiz!
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