terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Vitral

Quando eu nasci parece que minha mãe não se deu conta de que eu tinha uma fenda entre as pernas, parecia um pouco decepcionada com a ausência de algo cilíndrico. A terceira gestação lhe resultou em mais uma filha mulher e, para piorar, muito carente. Talvez, para protestar contra o destino, ela me registrou com o nome de Helena, a mulher mais bela do mundo.
Acredito que a ideia pode não pode não ter sido apenas dela, meu pai era um amante dos livros e adorava mitologia grega, mas o fato é que recebi esse nome e durante muito tempo achei que era um peso. Eu chorava, como Helena chorou ao ser raptada por Teseu, ao ser obrigada a se casar com Menelau e, por fim, ter sido separada de Páris, seu único amor de verdade.
          Enquanto as lágrimas desciam, minha mãe lutava para criar três filhas em uma sociedade machista. De gênio forte, ela nos levava com mãos de ferro.
          Sempre fui cândida por natureza, ou talvez por covardia mesmo, cresci assim, infinitamente menina, aspirando ser mulher.
          Estudei... fui para a faculdade. Meu período de graduação foi como um limbo... sexualmente falando. Estava quase fazendo voto de castidade quando finalmente conheci alguém, um homem digno de estudo. O ego dele deveria ser pesquisado, dada a infinidade do mesmo, mas não posso me queixar, ao menos tive experiências bem interessantes.
          Com ele aprendi a não a me posicionar melhor... ah, que delícia são as metáforas. Na verdade, aprendi quais posições me eram mais favoráveis. Meu amante não era muito esperto, bastava fazer uma carinha de total adoração e ele achava que estava no comando.
          Findo esse período, descobri o óbvio, que minha mãe não estava pronta para uma filhinha tão dependente como eu.  Logo se fez entender dizendo “gentilmente” que me queria fora de casa.
          Eu passava metade do tempo achando a vida injusta comigo e a outra metade pensando em que tipo de emprego poderia arrumar. Pensava em tudo, menos em exercer minha profissão.
Havia me formado, com louvor, em biblioteconomia. Meu pai teria adorado a minha profissão, já a toda poderosa, minha mãe, achou que assim eu ficaria escondida, como tanto gostava quando era criança.
Consegui um emprego em uma biblioteca pequena, em um bairro próximo. O salário não era dos piores, dava para pagar o conjugado para onde me mudara e comprar um vinho razoável.
Meu trabalho consistia basicamente em guardar os livros que os visitantes deixavam nas mesas. Passava grandes períodos lendo obras sobre psicologia e filosofia, tentando entender mais sobre esses assuntos. Em geral, os mais procurados eram livros de autoajuda, acredito que talvez a existência pesasse para muitas pessoas.
Alguns livros eu lia e relia, foi assim com “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” de Freud. Procurei-o na estante e não encontrei, busquei a ficha e vi que um tal de Ricardo o havia levado e o devolveria dali a dois dias. Acabei ficando curiosa sobre que tipo de pessoa ele era, quais livros o interessavam. Busquei a ficha dele também e fiquei surpresa de ver sua seleção: O Relatório Kinsey”: “O Comportamento Sexual da Mulher”, “Descobrindo o Prazer”, “Heterossexualidade”, o “Kama Sutra” e o que mais me surpreendeu “Jardim Perfumado” do Xeque Omar Ibn Muhammad Nefzaui, escrito no século 16, obra na qual ele detalha a intimidade sexual do casal e dá dicas para estimular e agradar a parceira.
Pensei logo que esse Ricardo poderia ser três tipos de pessoas: ou era casado, ou um grande cafajeste, ou ainda, um homem extremamente feio que alimentava suas fantasias sexuais através da literatura.
Os dias se passaram sem novidades e Ricardo apareceu na data marcada para a devolução do livro. Observei-o abertamente, sem pudor. De pele queimada pelo sol, olhos e cabelos castanhos, um pouco mais alto do que eu, e... sem aliança.
Deve ser um cafajeste. – pensei.
Cumprimentou-me sem muito interesse, passeou pelas estantes, mas não pegou nenhum livro.
___ Não levará nada hoje? __ perguntei.
___ Não.
Tão lacônico, poderia dizer mais alguma coisa.
Mas ele se foi. Os poucos visitantes se foram também e eu fui para casa. Pensei em ligar para a minha mãe, mas na mesma hora vi que não seria bom, eu e ela não compartilhávamos de ideias afins, logo não conseguiríamos manter uma conversa pacífica por mais de cinco minutos.
Estava querendo notícias das minhas irmãs. A mais velha, Vera, havia se casado há um tempo, mas nunca me ligava, nem a minha irmã do meio, Maria, que ainda morava com minha mãe. Enfim, elas não entravam em contato e eu também não, era isso.
Acabei vendo meu filme favorito: “O Piano”. Eu não o tirava do aparelho de DVD, não cansava de ver e rever a saga de Ada McGrath. Acho que me identificava com ela, sempre fui muito silenciosa, não conversava com a minha família, mas tinha e tenho um fluxo de pensamento muito intenso, a comunicação comigo mesma poderia soar como esnobismo, mas não era.
Quando não via um filme, ficava simplesmente fazendo contas e acalentando o sonho de ter uma livraria no futuro. Assim, duas semanas se passaram quase tranquilas, digo quase porque recebi um telefonema de minha irmã mais velha dizendo que minha mãe havia sido hospitalizada. Corri para lá.
Entrei no hospital sem saber o que esperar, minhas irmãs estavam sentadas na recepção, me abraçaram chorando, pensei que minha mãe estava morta.
Maria me explicou o que acontecera, disse que nossa mãe estava na cozinha quando ela ouviu um barulho forte e a encontrou caída no chão, ligou para a emergência do hospital e mandaram uma ambulância, o estado dela era grave, as primeiras horas eram cruciais.
Foram momentos muito ruins, choramos e rezamos juntas. Éramos tão distantes uma das outras, mas naquele momento, éramos uma só dor, uma só esperança. Horas depois o médico nos informou que o quadro dela era gravíssimo, ela fora transferida para a UTI.
Revezávamo-nos no hospital em três turnos, a fim de estarmos perto e saber notícias o mais rapidamente possível.
Quando acordou, pudemos vê-la, uma de cada vez. Em meio a todos aqueles aparelhos estava a minha mãe. Já não parecia mais tão forte, mas ainda impunha respeito. Com voz fraca e respiração difícil, falou comigo.
___ Perdão. __ disse ela.
___ Perdão, mãe? Perdão pelo quê?
___ Perdão... filha... perdão. Tive que fazer você crescer.
Comecei a chorar.
___ Deixe-me fa... falar... eu preciso. Sempre tive muito orgulho de você... filha estudiosa, te amo.
___ Eu também te amo, mãe.
Ela ficou em silêncio. Eu sabia que tinha que calar a boca, mas fazia muitos anos, desde que eu era criança que não dizia aquilo para ela.
___ Minha joia preciosa, você era a filha que mais me preocupava, tão frágil, tão meiga, tão desprotegida... eu não sabia como lidar com você, pensava na minha menininha em um mundo difícil, em um mundo de homens... filha, você não poderia ser assim para sempre...
Ela estava tão cansada, se esforçava tanto para falar. A impressão que eu tinha era de que as palavras eram como pedras e rolavam de um lado para o outro em sua boca, saíam com muita dor.
___ Pedi para você ir embora de casa... chorei, filha, chorei muito... mas... você ... cresceu, ... conseguiu emprego, casa...
Fechou os olhos, abriu em seguida.
___ Você já não é uma menininha, é uma mulher e ... tenho orgulho de você...
Naquele momento seus olhos se fecharam e os aparelhos começaram a apitar, médicos ou enfermeiros, não sei, entraram e eu tive que sair.
Maria olhava para mim sem entender, atordoada. Abracei-a com força.
Uma mulher de branco veio falar conosco, se identificou como Lúcia, Assistente Social. Nossa mãe estava morta, não resistira a mais um infarto.
          Choramos...
          O funeral foi singelo. Fiquei até o último momento, até a última pá de terra ser jogada. Fui à casa de minha mãe, que, assim como ela, parecia dormir em paz. Minhas irmãs pareciam abatidas, mas prontas para discutir o que ficaria para quem. Mamãe gostava de espaço, era despojada, não era afeita a colecionar nada. Olhei em volta e resolvi ficar com um vitral, de alguma maneira ele me lembrava de minha mãe, de mim, me deixava mais próxima dela. A disposição das cores era maravilhosa, o marrom, contrastando com o amarelo forte das pétalas, seguido de todo um colorido da natureza e da borboleta, que tão gentilmente encostava-se ao girassol. Todos aqueles elementos celebravam a vida, a tudo o que eu deveria me agarrar naquele momento de tanta dor.
          Minha mãe sempre fora organizada financeiramente falando, havia feito um seguro e deixado partes iguais para cada uma de nós. Foi Vera quem nos contou, disse que o advogado entraria em contato para falar sobre o seguro, o inventário da casa e sua posterior venda.
          Vera sempre fora muito prática, mas não imaginava que fosse tanto.
          Pedi para ficar afastada do trabalho por um tempo. Fiquei trancada no apartamento até o dia em que me descobri deitada na cama em posição fetal, queria desesperadamente voltar ao útero de minha mãe e lá ficar, mas não consegui. Com dificuldade, forcei minha passagem de volta ao mundo e renasci, chorando e clamando por ar.
          Ele, o vitral, estava ali. Foi o primeiro objeto que avistei... Tantas cores quase feriram meus olhos, mas iluminaram minh’alma, senti a força vital daquela planta percorrendo minhas veias. Embora estivesse vendo as cores, elas estavam opacas, não sabia se meus olhos estavam turvos ou se não havia realmente acordado.
          Olhei pela janela e vi que já era noite, via-o daquela maneira por causa da luz difusa do poste da rua. Estava viva, viva, mas com uma parte faltando em mim.
Desconfiei da minha condição de reclusa e imaginei que meu corpo necessitava de um banho.
           Fui para a rua, sentei em um restaurante qualquer e pedi um jantar. O contato do alimento com a minha língua foi extasiante. Dias sem comer fizeram isso. Estava tudo delicioso, comi e ainda pedi sobremesa. Em um impulso pedi para cumprimentar quem cozinhara aquelas maravilhas.
          Ricardo era o cozinheiro. Parabenizei-o e ele sorriu para mim. Já era tarde e já estava terminando seu turno de trabalho, convidou-me para tomar uma taça de vinho, ali mesmo.
          Conversamos bastante. Meus conhecimentos sobre culinária eram e são parcos, mas fiquei encantada com a palestra dele sobre temperos, ervas e carnes.
          ___ Sua conversa é muito agradável.__ disse ele.
          ___ Obrigada. Falar sobre comida com o estômago cheio é melhor do que com ele vazio, parece que se entende melhor o que está sendo dito.
          ___ Você tem um senso de humor raro.
          ___ Rir é sempre muito bom.
          ___ Mas você não está sorrindo.
___ Está tarde, preciso ir.
          Quando tentei me levantar, fiquei completamente tonta, Ricardo me amparou.
          ___ Acho que você está um pouco “alta”.
          Meus olhos se encheram de lágrimas que queimavam em minhas órbitas.
          ___ Desculpe, Ricardo, não é nada com você. Não quero falar sobre isso.
          ___ Não precisa falar, vou te levar para casa.
          Depois pegar o meu endereço, chamou um táxi e me levou para casa. Não me lembro bem daquele que seria o primeiro dos muitos dias em companhia dele.
          Ricardo foi muito atencioso, me colocou na cama de roupa e tudo, trancou a porta e jogou a chave por baixo quando saiu. Acordei com uma tremenda dor de cabeça. Por volta do meio dia, a campainha tocou. Sem coragem de me levantar, deixei que continuasse soando, mas acabei abrindo a porta. Era ele, com pão fresco.
          ___ Oi.
          ___ Olá, moça. Imaginei que não havia acordado ainda, era bem tarde a hora em que a deixei aqui.
          ___ Entre. Tenho muito que lhe agradecer. Olha... ontem... aconteceu uma coisa...
          ___ Ontem você disse que não queria falar sobre isso, acho melhor deixar assim, por enquanto.
          ___ Obrigada, Ricardo, muito obrigada.
          ___ Não precisa me agradecer, mas há algo que pode fazer por mim, e antes que pergunte, vou logo dizendo que é um café.
          Ri muito, ri alto, pela primeira vez desde que voltei à vida.
          Dali em diante, Ricardo estava sempre em contato comigo. Disse que era separado, que tinha dois filhos e uma ex-mulher. Os meninos viviam com ela e não o perdoavam por ele ter saído de casa, o pai os via de quinze em quinze dias, como manda a lei, mas eles quase não conversavam com ele, respondiam as perguntas com monossílabos. Ricardo entendia essa reação, embora sofresse com isso.
          Um dia, acabei contando para o meu mais novo amigo sobre a morte de minha mãe. Senti confiança para dar esse passo, a dor ainda era muito grande, me sentia extremamente culpada por não ter dito na minha adolescência o quanto a amava, o quanto queria parecer com ela, ter a força que ela possuía, seu caráter... a vitalidade daquela mulher que para mim, era a melhor mãe do mundo.
          Ricardo foi me mostrando que eu não tinha culpa, que alguns pais estabelecem relações conturbadas com os filhos, mas que nem por isso, deixam de saber que os amamos. Foi reconfortante pensar assim.
          Toda essa proximidade com Ricardo acabou mexendo comigo. Fazíamos jantares só para nós dois nos dias de folga dele, bebíamos vinho e ficávamos levemente embriagados juntos.
          Já era bem tarde quando ele disse que iria embora, pedi que ficasse. Quando o toquei, não resisti, me aproximei e o beijei, ao que fui prontamente respondida. Fomos para o quarto, loucos de paixão, mas rimos um da cara do outro quando vimos o nosso estado de embriaguez, sabíamos que não iria acontecer nada.
          ___ Helena, foi real? Esse beijo foi real, ou você está carente?
          ___ Foi real, eu gosto de você.
          ___ Então não vou me preocupar, ainda temos amanhã.
          ___ Ainda temos amanhã.
          Beijamo-nos e dormimos abraçados.
          A manhã seguinte foi repleta de amor. Ricardo acordou-me com beijinhos, pequenas mordidas e toques insinuantes. Fiquei tensa, imaginando como seria fazer amor com um homem que havia lido tantos livros sobre sexo.
          ___ Relaxa. __ disse ele com voz suave __ Relaxa.
          Como eu continuava tensa, ele me puxou da cama, fomos para o chuveiro. Ele ligou a água quente, lavou meu rosto, ensaboou minhas costas, minha coxa, minhas partes íntimas. A água relaxava minha musculatura e Ricardo intumescia minhas entranhas. Por fim, ele desligou chuveiro, tocou-me mais uma vez e, sem aviso, entrou em mim. Contive a respiração e esperei para ver o que sentia, meu corpo respondeu aos movimentos desconexos dele. Eu jamais havia feito amor assim, sem palavras, nos comunicávamos pelos nossos gemidos. Senti as pernas enfraquecerem e senti meu corpo se contraindo e relaxando... contraindo e relaxando, sabia que estava tendo um orgasmo. Ricardo também sabia e não parou por ali, saiu de dentro de mim e deixou que alguns segundos se passassem, se abaixou e me beijou, me mordeu, me prendeu em sua boca, tive outro orgasmo.
Não imaginava que uma relação pudesse ser daquela maneira. Ainda ereto, ele me penetrou e gozou. Sem nos falar, novamente o chuveiro foi ligado e tomamos banho.
Dali em diante, não nos afastávamos, relutávamos em deixar a cama de manhã para ir trabalhar, em voltarmos para nossas casas.
___ Helena, detesto ter que me afastar de você. Quando tenho que ir para casa e te deixar aqui fico mal, não durmo direito... ah, você sabe porque já me disse que sente a mesma coisa.
Dessa vez não interromperia, sabia o quanto o tempo era frágil e fugidio.
___ Acho que poderemos morar juntos.
Pulei no colo do Ricardo, cobri-o de beijos, estava felicíssima. Como o meu apartamento conseguia ser um pouco maior do que o dele, Ricardo foi quem se mudou. Tudo parecia perfeito, mas não era bem assim, os filhos dele não aceitavam que o pai estivesse com outra mulher e no início se recusaram a vê-lo, foi um período muito difícil para nós dois.
___ Não posso me render a eles... amo você Helena... os amo também, é complicado.
___ Ricardo, minha mãe me ensinou a crescer, eles precisam crescer. Dê tempo ao tempo.
Minhas palavras se revelaram sábias. Depois de uns meses, a saudade foi maior, eles pediram para o pai buscá-los, mas se recusaram terminantemente a me conhecer.
Cada dia era um dia diferente, comíamos em horários alternativos, namorávamos pela rua quando ele saía do trabalho, líamos os mesmos livros, porque como eu era a bibliotecária, podíamos fazer isso, e ríamos de tudo.
___ Entrega para o senhor Ricardo Peçanha.
___ Pode ir até a cozinha, é só seguir em frente. __ disse o gerente do restaurante.
Ricardo me contou que ficou surpreso ao receber uma caixa sem remetente, chegou a brincar com os amigos dizendo que era uma bomba, o que não deixava de ser verdade. Mandei pelo correio um par de sapatinhos brancos de bebê, foi a maneira que eu encontrei de contar que estava grávida. Minhas regras atrasaram e fiquei desconfiada, fui ao médico e ele confirmou, estava grávida de um mês, aproximadamente.
Tive medo de contar, nunca falamos sobre ter filhos, ele já tinha dois, poderia pensar que eu fizera de propósito. Por conta disso acabei guardando o segredo, mas não poderia esperar demais e piorar tudo.
Ricardo ligou para o meu trabalho e disse apenas que recebeu a encomenda, que conversaríamos quando chegasse a casa. Fiquei tão apreensiva que senti enjoos fortes e vomitei todo o almoço.
Quando ele chegou, trouxe consigo um buquê de lírios rosa. Misturando nossas lágrimas e nossos sorrisos, nos beijamos. Ele estava muito feliz, confessou que não havia pensado em ter mais filhos, embora também não tivesse pensado em casar de novo, disse que dessa vez seria tudo diferente.
Alugamos um modesto apartamento de dois quartos, afinal, a família estava aumentando. Marcamos logo as consultas do pré-natal. Tudo ia bem com a minha gravidez, exceto pelas náuseas e tonteiras.
Preferi não saber o sexo do bebê, mas Ricardo não gostou muito da ideia, queria saber logo, pintar o quarto, escolher o nome, comprar roupinhas, diante de tão bem vindo entusiasmo, não pude negar-lhe isso.
Na vigésima semana de gestação fizemos o ultrassom e soubemos que teríamos uma menina. Perguntas começaram a se formar em minha cabeça: “Será que ela seria como eu?” “Teria de fazê-la crescer como minha mãe fez comigo?” “O mundo seria cruel com ela?” “Como protegê-la?”.
Conversei com Ricardo sobre as minhas dúvidas e ele disse que isso era natural, preocupação de mãe.
 Parecíamos duas crianças quando pintamos o quarto, nos sujamos todos de tinta, resolvemos que deveria ser amarelo, cor de sucesso, caso, futuramente, ela quisesse pintar de rosa, seria uma escolha dela. A cortina era maravilhosa, possuía compartimentos para colocar ursinhos de pelúcia dentro. Ah, que dias maravilhosos...
As roupinhas da pequena eram lindas, com flores, com bichinhos, com tudo que se pudesse imaginar.
Um dia Ricardo chegou com várias bolsas de lojas infantis. Minha barriga estava enorme e eu me sentia particularmente indisposta aquele momento.
___ Amor, você trouxe o shopping todo para casa?
___ Não. Estive pensando com que roupas a baixinha vai às festas? Vocês mulheres adoram se vestir bem, por isso comprei uns vestidos de noite, uns sapatinhos, meia calça... tudo isso que meninas precisam.
___ Hum... isso se você a deixar sair, caso não fique morrendo de ciúmes.
___ Que nada, vou ficar na porta da festa olhando com quem ela conversa.
___ Conversar?! Ah, Ricardo, você é maravilhoso. Eu te amo muito.
___ Eu também as amo demais.
Isso já faz tanto tempo, que talvez a memória esteja me traindo e não tenha sido exatamente assim...
Faltavam apenas duas semanas para o parto, eu e Ricardo não havíamos chegado a um consenso sobre o nome, eu queria algo simples, como Nina, já ele queria algo grandioso como Joana. Pensei logo que esse nome poderia ser pesado para ela, com uma carga histórica muito grande, não queria que ela se sentisse na obrigação de repetir os feitos da francesa Joana D’Arc.
As árvores estavam todas floridas, a primavera prometia ser maravilhosa aquele ano.
___ Já sei! __ disse eu__ Já sei! O nome dela vai ser Yasmim.
___ Yasmim... Yasmim. É um lindo nome, combina com a data de nascimento dela, que segundo o doutor Anderson, deve ser entre a primeira e a segunda semana de outubro, em plena primavera. Gostei!
Pesquisei o significado do nome e descobri que Yasmim tinha origem no persa yasamen que significa "jasmim", também encontrado no árabe com a forma jasamin. 
A nossa flor perfumada estava chegando.
Como um relógio, no dia dez de outubro, minha bolsa estourou e comecei a sentir as contrações. Fiquei muito nervosa, mas Ricardo estava tranquilo, era marinheiro de terceira viagem. Quando as contrações tiveram menos espaço entre si, fomos para o hospital. Ainda era muito cedo, o sol não havia saído de todo, mas as luzes já começavam a colorir o céu.
Depois de cinco horas em trabalho de parto, finalmente minha menininha estava saindo.
Os médicos diziam para eu fazer força e procurei atende-los, mas a impressão que eu tinha era a de que estava sendo partida ao meio. Eu respirava, fazia força para baixo, respirava e me esforçava. O doutor Anderson pediu que chamassem mais outra doutora, não sei qual a especialidade dela. A mão de Ricardo estava suada e pegajosa, ele estava nervoso, vi em seus olhos que algo não ia bem.
Antes que eu desmaiasse, vi ainda a correria deles e mergulhei no escuro.
          Branco, parece tão estranho. Pensei. As paredes da minha casa são bege.
          ___ Oi. __ a voz do Ricardo era apenas um sussurro.
          ___ Oi. __ respondi.
          ___ Como está se sentindo?
          ___ Com sono.
          ___ Deve ser os efeitos dos remédios.
          ___ Que remédios?
          ___ Helena, acho melhor você descansar mais um pouco, vou chamar o seu médico.
          ___ Onde está a minha filha, Ricardo? Onde está a Yasmim?
          Ao invés de responder, ele apenas afagou os meus cabelos e fechou os olhos.
          Comecei a urrar como um animal ferido.
          ___ Onde está a minha filha?__ gritei.
          Tentei me levantar, mas fui contida por meu marido.
          ___ Você ainda está muito fraca, amor... tente se conter.
          ___ Eu vou achar minha filha.
          Imediatamente duas enfermeiras entraram e me espetaram com uma agulha. Mergulhei de novo no escuro, mas dessa vez minha mãe estava lá, me pegou no colo e me abraçou. Estranhamente me senti confortada naquele abraço.
          Quando acordei, Ricardo não estava do meu lado, dessa vez era uma enfermeira. Perguntei com dificuldade onde ele estava. Ele havia saído um instante para tomar um café.
          Chamado pela funcionária, Ricardo veio acompanhado do doutor Anderson, que fizera o meu parto.
          ___ Doutor, pode me explicar por que me colocaram para dormir? Onde está o meu bebê? Há quanto tempo estou aqui?
          ___ Calma, Helena, ele já vai te explicar. Deixe o médico falar.
          ___ Helena, entendo a sua ansiedade, mas você vai ter que ficar calma.
          Vi nos olhos de Ricardo que algo muito sério havia ocorrido.
          ___ A sua gestação foi normal, a formação fetal também. O bebê virou no tempo certo, tudo estava perfeito, mas na hora do parto houve uma complicação raríssima: ao invés de coroar, de aparecer a cabeça do bebê primeiro, o que apareceu foi o ombro, isso ocorre num nascimento em duzentos. A apresentação do ombro é extremamente perigosa, tivemos que forçar o nascimento a uma posição que chamamos de nascimento falhado. Era muito tarde para tentar uma cesariana, poderíamos perder você e ela. Helena, seu útero se rompeu, sua filha acabou morrendo e você teve uma hemorragia gravíssima, tivemos que estanca-la e fazer com que você passasse por duas transfusões de sangue. Infelizmente você ficou em coma por vários dias.
          Palavras e mais palavras que se amontoavam como lixo na minha cabeça. Ouvi apenas a palavra morte... morte. Yasmim estava morta, meu pequeno sonho, meu pedacinho de nuvem não chegaria mais.
          Quando o desespero é muito grande, não há olhos para enxerguem a esperança. Havia perdido boa parte da minha vida, perdi minha mãe, perdi o elo com minhas irmãs... havia perdido muito para uma vida ainda tão mal vivida de emoções.
Em meu sono conturbado questionava Deus e tudo o mais, queria agredi-lo de alguma forma para que ele me ouvisse, mas minha fé, a pequena chama que ainda estava acesa dentro de mim impediu que fizesse isso, ainda havia força dentro de mim, embora não quisesse que ela estivesse lá.
          Recebi alta não sei quanto tempo depois. Sentia como se meu corpo fosse um objeto, tirado de um lugar e colocado em outro que estranhamente não me dizia nada. Meu antigo quarto parecia pertencer a outra vida, a uma vida que eu não tinha memória, não sabia mais onde estava nada, como se nada mais me pertencesse, mas a chama ainda me prendia...
          Minha cama parecia tão aconchegante quanto um casulo, ali me sentia confortável, protegida, alienada. Ricardo falava coisas que eu não ouvia, dizia algo que pertencia a vida de outra pessoa.
          ___ Levante daí. Volte ao trabalho. Reaja.
          Todos os dias, as mesmas palavras:
          ___ Levante daí. Volte ao trabalho. Reaja.
          Ele estava tão longe, tão distante que eu não tinha forças para voltar.
          ___ Amor, levante daí. Volte ao trabalho. Reaja.
          Houve dias em que pensei que o perderia.
          ___ Levante daí. Volte ao trabalho. Reaja... por favor, por favor...
          Sabia que lágrimas deviam estar rolando dos olhos dele, mas não podia olha-lo, não sabia como fazer isso.
          Será que ela seria parecida com ele? Será que ela teria o gênio dele? Os dentinhos, o sorriso, a inteligência, seria a mesma que a dele? Tantas perguntas... o tempo jamais me traria as respostas... não havia como isso acontecer... Ela não cresceria... não sorriria. Ai... ela não existia mais.
          Quando estava só, criava e recriava seu nascimento: caso eu tivesse optado por cesariana, ela teria sobrevivido, ou teria sido me tirada de qualquer maneira? Deveria ter me cuidado mais e ter engravidado depois? Será que não seria um parto mais simples?
          Minha mente era uma máquina de reprises. Eu conseguia me aproximar e me afastar de minha filha, conseguia imaginar seu singelo sepultamento a que não conseguira ir porque estava em coma.
          Até nisso eu falhei com você, filha, não me despedi.
          Em pouco tempo minha barriga murchou, não havia sinais de que ali havia existido vida, meu ventre estava seco e oco, como minhas lembranças.
          Acabei não voltando mais ao trabalho, fui diagnosticada como tendo uma profunda depressão, não sabiam dizer ao certo se fora causada por conta do parto difícil, pela hemorragia ou pelo trauma que havia passado. Pouco me importava o que causara aquilo, o importante é que eu passava horas deitada, com as cortinas fechadas, sem saber se era dia ou noite.
          Ricardo me tirava da cama e me colocava sentada perto da janela da sala, falava comigo e parecia não se importar com o meu silêncio, por minha vez, eu não me incomodava com seu falatório, apenas o olhava e tentava fazer parecer que o compreendia.
          Certo dia chegou acompanhado de uma mulher, apresentou-me a senhora que seria minha acompanhante durante o período em que estava trabalhando. Ele temia que eu tentasse contra minha própria vida, mas não havia com o que se preocupar, já não havia vida em mim.
          ___ Bom dia, dona Helena. Meu nome é Josefa, a senhora pode contar comigo para o que precisar.
          Não respondi, não queria falar com ela, não queria falar com ninguém.
       Devo ter perdido a voz, já não devo mais ser capaz de falar.
          A mulher ligava a televisão e me colocava para assistir. Nunca gostei de novelas, achava uma grande perda de tempo. As histórias eram bem escritas, bem estruturadas para enganar as massas mais empobrecidas da população, com heroínas ricas que sofriam pelo rapaz pobre, ou jovens pobres que mudavam de condição de vida no final da trama. Ela não sabia, coitada, que o silêncio ou a TV ligada para mim davam no mesmo.
          Dona Josefa não parava de mexer em mim, fazia massagens nas minhas costas com óleos aromáticos, colocava camisola em mim antes do meu marido chegar e penteava meus cabelos todos os dias.
          Sempre fui magra, mas meu peso diminuiu muito. Ricardo tentou de tudo, mas eu esperava apenas o momento de me unir a minha filha.
          Exausto, ele deitava na nossa cama, ao meu lado e dizia que eu era linda, tocava meu corpo magro embaixo dos lençóis e falava como minha pele era macia. Eu queria poder falar para ele que me deixasse, que não me dissesse aquelas coisas...
          ___ Tá sentindo a minha mão? Lembra-se da primeira vez que dormimos juntos, amor? Não fizemos nada, mas dormimos de mãos dadas.
          Dois meses se passaram sem que meu estado melhorasse, ele estava bastante abatido, tinha que cuidar de mim durante o dia e trabalhar no restaurante à noite.
          Minhas irmãs apareceram na nossa casa. Maria continuava a mesma, simples e tímida, já Vera era toda felicidade em sua segunda gestação. A imagem dela piorou meu estado de ânimo. Minha gentil acompanhante pediu que elas viessem num outro momento, disse que eu estava um pouco cansada.            
Vera sabia muito bem do que havia acontecido comigo. As sábias palavras de dona Josefa aliviaram a ruga de preocupação que estava entre seus olhos.
Maria se ofereceu para ficar comigo nos dias de folga da minha acompanhante, mas ela declinou, disse que trabalhava poucas horas e não se incomodava de não tirar folga.
Embora estivesse alheada aos cuidados com a casa, não pude deixar de perceber que Ricardo desfez o quarto da nossa menina. Pintou as paredes de bege, como o restante da casa e fez um pequeno escritório, com uma estante de livros e a mesa do computador. Fiquei triste, mas aliviada por não ter que mexer em nada.
Dona Josefa, acredito eu, deve ter-lhe dito algo sobre o meu estado, porque ele pediu licença do trabalho para ficar comigo. Insistia todos os dias para que eu comesse. Meu corpo já estava tão fraco que eu não me levantava mais, nem para ir sentar na sala... os medicamentos não estavam reagindo em mim.
Meus fiéis guardiões me levavam para a rua em uma cadeira de rodas, todos os dias, dia após dia, depois eu me deitava na cama e lá ficava, não sentia calor nem frio.
Certo dia, Ricardo veio me trazer o almoço. Tentei dizer que não queria, mas ele me convenceu a comer algumas pequenas colheradas. Era um delicioso tacacá, mas senti que estava um pouco apimentado, isso mais o jambu, erva típica da região do norte do Brasil, causaram curiosos efeitos sobre mim. A pimenta me deixou com muito calor, já o jambu deixou meus lábios ligeiramente dormentes.
Era impossível voltar para cama com o meu corpo em chamas, como tinha a sensação de que estava. Tive que sair do quarto, e por vontade própria.
___ Muito bem, senhor Ricardo, ela está reagindo. Vai dar tudo certo.
___ Tomara, dona Josefa. Não aguento mais ver minha mulher assim.
Na noite daquele dia, minha refeição consistiu de um lanche simples, uma torrada com chá de hortelã. Depois de todo aquele calor, o toque refrescante daquelas folhas verdes foi maravilhoso.
Mas, na manhã seguinte, lá estava eu de novo prostrada na cama. Fui agraciada com um mingau de maisena com canela. Novamente aquele calor abrasador, meu rosto ficou rosado e parti para o meu passeio matinal.
Ouvi minha acompanhante e Ricardo cochichando algo, mas não sabia o que era.
___ A pele dela estava começando a ficar amarelada, mas agora está vermelhinha. Com um pouco de sol vai ter uma aparência mais saudável.
___ Dona Josefa, a senhora tem me ajudado muito, está se desdobrando em mil. Sei que não combinei de a senhora ficar durante o dia também, temos que rever o seu salário.
___ Seu Ricardo, nem pense nisso, gosto muito de ficar com ela. Como o senhor sabe, não tenho família, fico em casa quase que o tempo todo sozinha, aqui tenho a companhia dela e do senhor, que me ensina coisas maravilhosas.
___ Obrigada, dona Josefa, muito obrigada.
Sempre gostamos de nos alimentar bem, nossa dieta era rica em frutas, mas nunca tive que comer tantas. Meu café da manhã veio em uma bandeja: amoras, morangos, framboesas e jambo, tudo arrumadinho em uma tigela e iogurte na outra.
___ Quantas frutas! __ consegui dizer com voz fraca.
___ A senhora não deve reclamar, frutas são muito fáceis de comer. __ disse minha acompanhante.
Algumas pessoas acreditam que frutas vermelhas são as frutas da felicidade. Para os romanos, o morango combatia a melancolia. O certo é que eu comi, com ela ali me olhando.
Mas nem tudo foi tão fácil assim, por várias vezes as pequenas vitórias alcançadas eles iam por água abaixo de um dia para o outro.
___ Já chega, porque não me deixam em paz... Não quero mais comer nada.
Passava o dia todo trancada em mim mesma.
Com uma estranha combinação de alimentos que me causavam calor, outros que refrescavam e outros que simplesmente acalmavam, ele foi lidando com a situação.
Meu humor era como a alta e baixa das marés. Havia dias em que eu acordava tranquila, já outros acordava agitada e nervosa. Em um dia de especial nervosismo gritei com Ricardo e dona Josefa, expulsei-os do meu quarto, mas meu marido com lágrimas nos olhos me disse uma grande verdade.
___ Acha mesmo que só você está sofrendo, Helena? Só você perdeu uma filha? Por favor, seja um pouco menos egoísta! Eu também estou sofrendo! Eu também a queria aqui ao nosso lado! Mas estou lutando, enquanto você fica aí chorando e se lamentando. Pense nisso, porque a dor é nossa... nossa...
Chorei durante todo o dia.
          Ricardo preparou o meu jantar, mas não foi me buscar como sempre fazia, nem foi ao quarto levar. Achei muito estranho.
          Jamais havia experimentado um salmão tão gostoso. Creio que era feito no forno com legumes variados. Cada alimento tinha um sabor inesquecível, o doce da cenoura fora acentuado pelo mel, os outros legumes receberam um toque especial do alecrim, que historicamente tem sido usado para tratar ansiedades, melancolia, depressão e muitas outras enfermidades.
O alho em pedaços grandes não estava picante, aparentemente regado a azeite e no forno ele ficou com outro sabor. A decoração do prato também não me passou despercebida, ramos de louro entrelaçados davam um fino acabamento.
O recado era claro, ele queria que eu vencesse! Ramos de louro significam vitória, era o símbolo de Apolo, que na mitologia grega, era o deus da Luz.
Ricardo sempre teve um jeito muito especial de se comunicar comigo, ou ele deixava uma pétala de rosa em meu travesseiro ou apenas um molho de manjerona na pia da cozinha, quando queria se desculpar. O chá da manjerona tem propriedades calmantes.
Com uma batida forte e seca, sem o sorriso costumeiro, dona Josefa trouxe minha sobremesa. Em um prato negro, que eu nunca havia visto, estavam dispostos vários pedaços de carambola.
O amarelo da fruta em contraste com o prato foi quase chocante, a vida que eu estava buscando era o negro, a solidão, a vida ao lado do meu marido, era cheia de luz e alegrias.
Entendi.
Ajeitei meus cabelos da melhor forma possível, coloquei um penhoar por cima da camisola a fim de que minha magreza não ficasse tão aparente e fui para a sala, em paços vacilantes.
Dona Josefa e Ricardo estavam sentados a mesa, tomando um chá, mudos, me olhando.
___ Preciso falar com vocês.
___ Fale, querida. Estamos aqui. __ respondeu Ricardo.
___ Ricardo, eu nunca vou poder te agradecer por tudo que você fez por mim. E a senhora, dona Josefa, também ajudou muito na minha recuperação, também foi incansável nessa luta. Obrigada. Vocês dois são maravilhosos.
Eles me abraçaram e sorriram para mim.
Dali para frente, dona Josefa continuou trabalhando conosco, cuidando da casa enquanto eu me recuperava definitivamente.
Quando me senti forte novamente, comuniquei a Ricardo minha vontade de voltar a trabalhar, ele adorou a ideia, mas tive de admitir que não sabia por onde começar.
___ Ricardo, na verdade eu tenho um plano, uma ideia de recomeço.
___ Um plano, então trata-se de uma guerra! Temos que convocar a tropa.
Ri da brincadeira dele.
___ Amor, houve momentos em que achei que nunca mais iria ouvir nem sua voz, nem seu sorriso.
___ Esses momentos já vão muito, mas muito longe. Mas, vamos ao meu plano. Querido, quero montar uma pequena editora.
___ Helena, sei que você tem aquela herança que sua mãe deixou, mas... o mercado editorial anda meio fraco, hoje em dia as pessoas só pensam em livros digitais. Pode ser um mau negócio.
___ Não penso assim. Há muitos jovens escritores que estão em busca de uma chance. Os livros podem ser publicados em sistema de parceria. Caso tenhamos um espaço grande podemos ter a livraria no andar de baixo, na qual podemos publicar as obras de vários escritores e a editora propriamente dita no andar de cima.
___ Pensando nisso, pode ser, mas procure um advogado.
Nossa rotina finalmente havia voltado ao normal. Eu estava empenhada no meu mais novo projeto e Ricardo voltara ao trabalho e as visitas aos filhos, que mesmo com o passar do tempo se recusavam a se aproximar de mim.
Encontrei um sobrado antigo que se encaixava muito bem nos meus propósitos. Ele precisava de alguns reparos, mas deu para fazer tudo com o dinheiro que herdei.
A editora e a livraria foram legalizadas e eu comecei a trabalhar. Meu marido participou ativamente do meu sonho, adorou o charme e o toque que eu dei a tudo, dizia que eu era uma fada, um mecenas da literatura na versão feminina.
Como eu havia previsto, alguns pequenos escritores me procuraram e em breve a vitrine estava cheia de livros. Como a publicação era em sistema de parceria, o autor entrava com uma parte e eu com a outra, as obras não eram muito caras e, portanto, acessíveis aos leitores.
Depois de dezesseis anos no mercado editorial, meu nome era conhecido e respeitado.
___ Helena, andei trabalhando em uma coisinha aqui no escritório... escrevi umas linhas...
Deixei-o falar. Percebia que quando chegava do trabalho não ia se deitar logo em seguida. Tomava banho, preparava um chá e se trancava no escritório. Anos de casada me ensinaram a respeitar a privacidade do meu marido, jamais me senti compelida a descobrir o seu segredo.
A “coisinha” na qual ele estava trabalhando era uma linda obra que contava a nossa história, a história de como ele me salvou.
___“Curando a alma pelos alimentos: uma história de amor” por Ricardo Peçanha. __ li em voz alta.
___ Olha, se não estiver bom, não precisa publicar... eu fico feliz só de você ler.
A humildade daquele homem, que foi um leão no momento em que eu mais precisei, me emocionou.
Li o livro todo e fiquei encantada com as pesquisas que ele fez sobre alimentos que combatiam a depressão. Muitos deles fizeram parte da minha alimentação. Ricardo foi minucioso em seu relato.
No prefácio do livro ele mencionou algumas obras que ele lera anos antes, quando nos conhecemos: livros eróticos e pesquisas sobre sexo. Segundo ele, a sensação de prazer alcançada durante o ato sexual também pode ser obtida através dos alimentos. Muitos o criticariam, mas outros o entenderiam, era um risco que se deveria correr.
Fiquei tão sem jeito quando fizemos amor pela primeira vez, achava que ele usaria todo aquele conhecimento comigo e que talvez não conseguisse acompanha-lo.
Por outro lado, finalmente entendi os calores que eu sentia depois das refeições: ele usava os chamados alimentos termogênicos, tais alimentos aceleram o metabolismo, por isso eu não conseguia ficar na cama. O frescor vinha dos chás que eu tomava. A estratégia dele era me aquecer e resfriar. Trabalhando o quente e o frio eu jamais conseguiria ficar na minha zona de conforto, que era a cama.
A vida nos oferece naturalmente as sensações, mas eu estava fechada para isso, então ele encontrou uma maneira de mexer comigo, foi brilhante.
O livro dele não só foi publicado, como fizemos o lançamento na livraria. Vários amigos foram e pediram autógrafo.
 Artur e Davi, meus enteados, compareceram e foram polidos comigo, mas deixaram transparecer a emoção que estavam sentindo pelo sucesso do pai.
Dona Josefa estava lá, com seu exemplar na mão na fila de autógrafos, toda orgulhosa por ter sido citada e homenageada, como não poderia deixar de ser.
A noite foi maravilhosa.
 Ricardo estava exultante, ficou felicíssimo quando mostrei a garrafa de espumante que havia guardado para nós. Há muito que havíamos diminuído a bebida, mas aquele dia era especial.
___ Helena, estou tão feliz, que não preciso de mais nada nessa vida.
Fiquei arrepiada e pedi que nunca mais dissesse aquilo, afinal, ainda precisávamos muito um do outro.
Deveria ter percebido naquela noite que minhas provações ainda não tinham terminado. Ah, mas a felicidade embriaga, tolda os sentidos e nos faz fortes, nos sentimos acima de qualquer dor ou doença.
O diagnóstico não demorou a chegar. Ricardo estava com câncer.
          Conversávamos muito quando ele não estava se sentindo cansado ou com dor.
          ___ Helena.
          Sufoquei o soluço que tentava trazer lágrimas aos meus olhos.
          ___ Oi, amor.
          ___ Tive mais do imaginei que teria nessa vida. Estou feliz... Por favor, não chore, não estou com medo. Você já passou por tantas coisas, vai passar por essa também.
          ___ Passei por todas essas coisas porque você estava ao meu lado, agora vem me dizer que vou conseguir passar sozinha. Não, amor...
          ___ Helena, seu nome é tão lindo... significa tocha, luz luminosa, é isso o que você foi na minha vida.
          ___ Eu sou ainda, amor, eu sou sua tocha.
          ___ Eu sei, é por isso que a sua lembrança vai iluminar meu caminho durante a minha passagem. Meu amor, não deixe que a dor a domine como em tantos outros momentos, lute, Helena, com todas as suas forças, lute por mim, por você... meu amor... lute por nossa filha.
          ___ Ricardo...
          ___ Por Yasmim, por ela. O mundo não viu a mulher que ela poderia se tornar, mas viu a mulher que você se tornou por causa dela. Por nós, amor, por nós... sua família.
          Comecei as linhas mal traçadas da minha existência chorando e continuei chorando. Meu grande amor estava ali, diante de mim, perdendo a vida a cada minuto e pedindo que eu vivesse.
          As horas finais foram passadas com Artur, Davi e eu. No fim, Ricardo pediu para ser sedado, as dores eram fortes demais para ele.
          Faleceu.
          Sempre soube que ele queria ser cremado e providenciei para que assim fosse.
          Em uma pequena caixinha de prata, que ele me deu de presente no nosso aniversário de dez anos de casados, pedi que fosse guardada uma pequena parte de suas cinzas, já que deixei a urna para seus filhos e parentes colocarem no jazigo da família deles.
          Fui para casa... tinha medo de mim. Posicionei uma cadeira no meio da sala, de frente para o vitral que fora de minha mãe.
          O que farei agora?
          O que farei agora?
O que farei agora?
Esse pensamento não me saía da cabeça, mas as cores refletidas na minha pele diziam:
___ Viver! Viver! Viver!
Foi na pequena lápide de minha filha que despejei aquele pedacinho de Ricardo que ficara comigo, agora ela o teria também.
Ali, naquele lugar sagrado que disse aos meus amores que sobreviveria.
E assim eu fiz!

         








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