domingo, 19 de janeiro de 2014

Samir

Ele já estava no terceiro cigarro. Bem acomodado em sua melhor poltrona, observava a tudo impassível.
          Ela se movimentava freneticamente de um lado para o outro. Alguns objetos ela colocava com calma na caixa, outros ela literalmente jogava lá dentro.
          ___ Vou levar os cisnes de quartzo rosa. __ disse ela.
          ___ Bianca, foi presente da minha madrinha. Não vou te dar! __ respondeu ele.
          ___ Fico então com as taças de cristal.
       “Mais um cigarro. Assim o maço vai acabar logo e o pior é que a essa hora a tabacaria da esquina já está fechada.”
          ___ A caixa vai abrir no fundo. __ observou ele.
          ___ Não vai me ajudar?
          Uma tragada, seguida de uma baforada. Ele a observou por entre a fumaça.
          ___ É piada? __ finalmente respondeu.
          ___ O quê?
          ___ Eu perguntei se é piada.
          ___ Seu cretino! Claro que não é piada.
          ___ Eu não vou te ajudar, você está me deixando, não vou contribuir para isso.
          Por um momento pareceu que ela iria dizer alguma coisa. Seus olhos, de um verde desbotado, apresentaram uma luz. Ele reconheceu essa luz assim que a viu. Era o brilho que a iluminara há dez anos, quando se conheceram.
          Aos treze anos, Bianca era uma menina simples, sem muitos atrativos, mas com grandes olhos risonhos, que por muitas vezes ficaram tristes e as lágrimas tiravam o pouco de cor que tinham. Quando isso acontecia, ele a abraçava até ela quase entrar nele e ficar acomodada em seu coração. Foi assim, abraçados, que fizeram amor pela primeira vez.
          O casamento, digno de dois apaixonados com pouco dinheiro, durara cinco anos e estava acabando ali, naquela hora, na sua frente.
       “Acabou, a droga do cigarro acabou.”
          Remexeu-se um pouco na cadeira, pensando se deveria ou não ir até o bar preparar uma bebida.
       “Não, beber agora só vai me dar mais vontade de fumar. Além disso não posso correr o risco de chegar perto dela, o cheiro daquela pele pode me amarrar, vou acabar levando ela para o quarto, o nosso quarto. Não, isso não, nunca mais!”
          A porta bateu com força.
          ___ É... ela fez serviço completo, levou tudo.
          Ele olhou em volta e viu o horrível abajur que a sogra lhes dera de presente achando que era algo muito elegante, como ela gostava de se gabar.
          ___ Pois bem, fique aí então, faça parte da requintada decoração clean que agora tem a casa.
          “Definitivamente preciso de uma bebida.”
          Preparou um Martini. Passava quase todas as noites preparando drinques para os clientes do bar onde era sócio, tinha o direito de tomar um trago.
          A bebida não o relaxou. Achou melhor sair um pouco. Caminhou pelas ruas onde sempre passava na madrugada. Naquele dia quente e abafado as pessoas estavam nos bares, rindo, conversando, namorando. Na hora em que saía do trabalho não via ninguém, estranhou um pouco tantas vozes e sorrisos.
          Foi ao barzinho onde sempre encontrava os amigos. Conversou com um, com outro e assim foi por longos doze meses. Achou melhor não sair por aí contando que a mulher o deixara. Não que não tivesse confiança nos amigos, não tinha confiança ainda nos seus sentimentos para tocar no assunto.
          Conversou apenas com uma pessoa, mesmo assim, superficialmente. Elias era o homem ideal para saber do ocorrido. Calado, discreto e sensato, o amigo apenas o olhou, não disse uma só palavra, mas não deixava de atendê-lo quando ligava para conversar ou o chamava para assistir futebol na televisão.
          Elias ligou para Samir e o chamou para ir ao bar de sempre, naquela noite haveria um duelo de bilhar.
          Os jogadores pareciam bastante concentrados, competitivos, mas nada que os fizesse perder a amizade. Por fim sobraram apenas Alessandro e Renato. O primeiro era mais velho, um pouco mais lento nas tacadas, já o segundo era arrojado, rápido. Samir intimamente torcia por seu amigo, Alessandro, porque achava Renato, um garoto de uns vinte e dois anos, muito cheio de si. A superioridade técnica de Alessandro se fez presente e ele ganhou o prêmio de melhor jogador.
          Enquanto Samir e Elias cumprimentavam o vencedor, uma bela morena chegou. Ela sentou a mesa de uma mulher que ali estava e conversaram animadamente. Nenhum dos três tiravam os olhos da recém-chegada, que ficou sozinha depois de um quarto de hora.
          “Bonita, mas não faz o meu tipo. __ pensou Samir __ Não gosto de mulheres com roupas tão decotadas. Definitivamente não a quero.”
          Renato sentou-se ao lado dela e começaram a conversar.
          Cansado, Samir tomou mais um gole e se despediu. Era carnaval, todos estavam festejando, mas ele não tinha nada para comemorar, só queria ir para casa e dormir.
          No final de semana seguinte soube que a morena se chamava Ângela, era jornalista e tinha uma coluna semanal em uma revista.
          Foi preciso mais umas duas semanas para que se vissem novamente, um amigo os apresentou.
          “Metida, fala do trabalho dela de um jeito, como se fosse a coisa mais importante do mundo. Bom, mas ela não é o problema, é a garota do Renato. Ele que a aguente.”
          A separação foi um golpe duro para ele e não havia superado o fato. Não amava mais a ex, mas ainda se sentia sozinho e com raiva das mulheres. Aproximava-se delas apenas quando o corpo assim o exigia, sentir prazer sozinho não era uma boa opção. De tempos em tempos ficava com uma garota que conhecia em seu próprio bar. Não a levava para casa, ia a um motel próximo e ali mesmo a descartava.
          Naquela noite estava se sentindo mais sozinho do que nos outros dias, já fazia um tempo que não ficava com ninguém. O amigo que o acompanhava falava sobre um assunto extremamente maçante para ele.
          Ângela apareceu, cumprimentou-o distante. Samir, que não queria passar mais uma noite só, sorriu-lhe sedutor e a convidou para sentar. O amigo percebeu que estava sobrando e foi embora.
          “Até que ela não é tão arrogante, parece ser muito inteligente.”
          ___ Vou ser sincero com você... __ começou ele.
          ___ Assim você me ofende, achei que estávamos sendo sinceros um com o outro. __ respondeu ela.
          Ele não conseguiu conter o riso, ela tinha senso de humor.
          ___ Quero te convidar para beber alguma coisa em outro lugar, mas não sei se devo. Afinal, todos vimos você com o Renato a um tempo atrás, não sou necessariamente amigo dele, mas não quero me aventurar com alguém que pode ser comprometida.
          ___ Comprometida?
          ___ É, chamam você de “a garota do Renato”.
          ___ Aos trinta e três anos de idade ser chamada de garota é um elogio e tanto, mas não, não tivemos nada eu e ele. O Renato bem que tentou, mas... enfim... acho que ele é um pouco imaturo, não seria uma boa ideia.
          A sinceridade de Ângela estava em seus olhos, lindos olhos castanhos.
          Quebrando todas as suas regras, Samir levou-a para casa, conversaram mais um pouco e trocaram o primeiro beijo. Os lábios dela pareciam delicados, mas a língua era exploratória, desafiadora.
          Romântico, exaltou a beleza da pele dela, o perfume, o corpo. A princípio só queria olhá-la, captar tudo o que havia nela. Ângela não só sustentou o olhar como o retribuiu com admiração e respeito.
          Amaram-se sem pressa. Ela o prendeu entre as pernas, deixando clara a vontade que tinha de que ele ficasse ali, totalmente entregue, dentro dela.  O prazer era quase palpável.
           Samir permitiu-se ficar preso por um tempo, mas suas mãos estavam livres e tocou o sexo dela languidamente.
          ___ Você é quente... _ arquejou _ gostosa.
          Ela não respondeu, apenas gemeu baixinho.
          O momento estava chegando para ambos, mas Ângela tinha outros planos. Pediu que ele se levantasse e que se amassem de pé, na janela, olhando a lua. Chegaram ao êxtase juntos. Sonolentos e saciados, dormiram abraçados.
          O sol trouxe um novo dia e a realidade de volta a vida de ambos. Samir deixou-a em casa e foi embora.
          “Não peguei o telefone dela. Melhor assim, não quero me envolver com ninguém agora.”
          Passada uma semana Ângela voltou ao bar, ele a viu, mas deixou-a pensar que não havia visto. Estava cheio de ciúmes, queria ver se ela falaria com Renato ou com ele primeiro.
          Inteligente, Ângela não falou com ninguém, atravessou a rua e deixou o cartão de visitas dela preso na moto dele.
          Depois que ela se foi, Samir recolheu o cartão e guardou consigo.
          “Não vou ligar. Ela deveria ter falado comigo. O que está pensando?”
       Não aguentando mais de saudades, acabou ligando e marcaram de se ver no bar dele. Ela estava linda dentro de um vestido branco.
           A noite juntos foi maravilhosa, ela estava feliz por vê-lo novamente e ele mais ainda. Dessa vez havia pressa, muitos dias haviam passado sem se ver.
          Nus, tomaram banho juntos. O sabonete deslizava macio, a água fria não conseguiu diminuir a temperatura corporal de ambos. Excitados fizeram amor ali mesmo.
          ___ Ufa, depois de tanto exercício, bateu uma fome. __ disse ela.
          ___ Fique aqui, vou preparar algo para comermos.
          Ângela relaxou, respirando suavemente, estava quase dormindo quando Samir voltou com uma bandeja cheia de sanduíches e suco. O lanche foi devorado com mordidinhas e gargalhadas.
          ___ Somos um casalzinho muito fofo! __ disse ela.
          Samir não respondeu, sabia o que ela queria dizer, mas não se sentia preparado para responder, deixaria no ar a insinuação dela. Ângela pareceu não perceber a hesitação.
          Ele gostava da companhia da moça, da sua fala cadenciada, pausada, marcada por risadas inesperadas, por seu senso de humor ambíguo, mas... sentia que não havia nada mais além disso.
          No início encontravam-se apenas no final de semana, mas acabaram por se ver durante a semana também, almoçavam juntos ou ela ia ao bar dele para conversarem no final da noite e depois partiam para a casa dele ou o apartamento dela.
          Maliciosa, Ângela não perdeu tempo em trazer de volta o assunto do relacionamento deles.
          ___ Recebi dois convites para ir ao casamento de uma amiga. Eu e meu namorado. __ frisou a última palavra.
          “Ela está apressando as coisas. Não estou pronto ainda, preciso de mais tempo.”
          ___ Olha, Ângela, eu... eu não quero ser grosseiro com você, mas... bom... acho melhor você ir sozinha.
          ___ Não vejo problema nenhum em você ir comigo.
          ___ Mas eu vejo, sabe? É que...
          Um lampejo de compreensão passou pelos olhos dela.
          ___ Entendi. Não somos namorados, não temos um relacionamento. Somos apenas duas pessoas que gostam de fazer sexo, de rir juntos, mas não podemos namorar.
          ___ Ângela, não me leve a mal, mas eu saí de um casamento agora, não quero me envolver com ninguém.
          ___ Por favor, não tente se justificar, vai acabar piorando tudo. Não use a palavra “agora”, soa mal, porque já faz pouco mais de um ano que você se separou. Tchau.
          Ele a viu sair, viu a mesma porta bater, mas dessa vez de leve, mas dessa vez alguém com quem ele se importava passando por ela. Não sentiu vontade de sair, queria ficar em casa, sentindo ainda o perfume dela que começava a se dispersar pelo ar.
          Ligou para Elias e pediu que o amigo fosse ao bar no dia seguinte.
          ___ E foi isso, meu amigo, mais uma mulher indo embora da minha vida. __ disse Samir.
          ___ Eu diria que ela não foi embora, mas que na verdade, você a pediu para sair.
          ___ Ela tentou apressar as coisas, eu não estava preparado.
          ___ Sei... se deixar por sua conta, você não vai estar preparado nunca.
          ___ Talvez... Não quero me envolver. Preciso mesmo é voltar a vida de antes, sem compromisso.
          Elias queria chamar o amigo a razão, mas sabia que não iria adiantar, o jeito era deixar a vida seguir.
          Samir perguntou discretamente se os amigos haviam visto Ângela, mas ela não aparecia há um tempo. Desde que ficaram juntos pela primeira vez, combinaram que ela não iria ao bar no mesmo dia que ele, queriam manter a privacidade, mas pelo visto, mesmo separados ela não voltara lá.
          “Melhor assim.” Pensou.
          ___ Samir, estão tocando a campainha.
          Ele estava no chuveiro e não ouviu o que a moça havia dito. Sequer se lembrava do nome dela, estava arrependido de tê-la levado para seu recanto, mas era tarde, o motel de sempre estava cheio e ele não estava com vontade de procurar outro, por isso e pela carência trouxera.
          A mulher abriu apenas um pouquinho a porta para ver quem era. Ângela estava ali, com uma garrafa de vinho e uma sacola pequena. Ambas ficaram constrangidas, até que a mulher disse algo:
          ___ Oi, meu nome é Val, Valéria. O Samir está no banho, quer esperar um pouco? Não te convido para entrar agora porque estou sem roupa.
          ___ Val, não precisa se preocupar, não quero entrar. Vim apenas trazer isso para vocês.
          ___ Ah, obrigada.
          Com os olhos rasos d’água, Ângela foi embora.
          Samir estava saindo do banheiro quando ouviu a porta sendo fechada.
          ___ Ouvi o barulho da porta. __ disse ele.
          ___ Era uma moça, disse que não queria entrar e que veio trazer isso para nós.
          Samir nem precisou perguntar como ela era para saber que Ângela estivera ali, o perfume dela confirmara sua suspeita. Tenso, ele conseguiu que a mulher fosse embora.
          ___ Como eu fui burro! Ela veio aqui, queria me ver.
          Olhou as coisas que ela havia levado: uma garrafa de vinho chileno e queijo.
          Tentou falar com ela pelo celular, mas estava desligado e no telefone de casa ninguém atendia. Angustiado, tentou localizá-la até a noite e nada.
          Foi ao bar onde se viram pela primeira vez, lá encontrou os frequentadores de sempre, inclusive Renato, menos ela.
          Como que pressentindo que algo estava errado com o amigo, Elias se aproximou.
          ___ E então?
          ___ Elias, essa é a abordagem mais estranha que eu já vi.
          ___ Você não me respondeu.
          ___ Para falar a verdade não sei nem como começar a responder.
          ___ Então a confusão está grande na sua cabeça.
          ___ É exatamente isso.
          Samir contou tudo o que acontecera, a separação de Ângela, os dias solitários, a mulher que levou para casa e o desfecho da história.
          ___ Samir, provavelmente ela foi dizer para você que esperaria o seu tempo. Deve ter pensado com calma e viu que alguns homens como você precisam de mais tempo, sei lá.
          ___ Não adianta agora dizer o óbvio: que eu estraguei tudo.
          ___ Acho que não vai adiantar nada.
          Samir não conhecia nenhum dos amigos de Ângela, ele mesmo fizera que assim fosse, portanto não tinha como saber do seu paradeiro, já que fora ao apartamento dela e soube que havia viajado.
          Algumas semanas depois viu sentada a mesa do bar a mulher com quem ela conversara na primeira vez que a viu. Sem pudor, abordou-a:
          ___ Oi, meu nome é Samir, eu a vi uma vez lá no bar do Amilton, você estava conversando com uma moça, uma jornalista... o nome dela é Ângela.
          ___ Oi, conheço ela.
          ___ Sabe onde ela está?
          ___ Sei.
          ___ Desculpe, qual o seu nome mesmo?
          ___ Patrícia.
          ___ Patrícia, eu não sei se você sabe, mas eu e ela tivemos um relacionamento. Acabamos nos desentendendo, mas eu gostaria muito de falar com ela.
          ___ Samir, eu sou irmã da Ângela, ela me contou tudo, tudinho.
          Embaraçado, ele ficou sem fala.
          ___ Então?
          ___ Você me lembra muito um amigo, mas, vamos lá. Patrícia, eu quero me desculpar com ela.
          Samir sempre foi um homem de poucas palavras, estava cansado, os dias estavam praticamente se arrastando, não dormia direito, estava esvaziado.
          ___ Ela foi para o Chile.
          ___ Como?!        
          ___ Ela foi pesquisar sobre os movimentos das mães e esposas que perderam seus filhos e maridos durante a ditadura militar comandada por Pinochet. O editor da revista onde ela trabalha topou financiar a estada dela durante o tempo que ela precisar para escrever a matéria. Serão vários artigos.
          Atônito, ele só pensava na distância que agora existia entre eles.
          ___ Deve ter sido por isso que ela foi aquele dia a minha casa, deve ter sido para me contar isso. __ respirou ofegante__ Patrícia, você pode me dar o nome do hotel onde ela está hospedada?
          ___ Não.
          ___ Por favor...
          ___ Acho melhor não. Se quiser, mande um e-mail para ela ou escreva algo que eu enviarei.
          ___ Tive uma ideia. Patrícia, pode voltar aqui amanhã às oito?
          ___ Posso, mas...
          ___ Então nos vemos amanhã.
          No dia seguinte, Samir apareceu com uma pequena caixa.
          ___ Olha, já passei nos correios e verifiquei mais ou menos quanto custará enviar isso para o Chile, aqui está o dinheiro. Envie isso para ela, por favor.
          Em poucos dias, Ângela foi chamada na recepção para receber um embrulho. Dentro havia uma bússola e um bilhete assinado por Samir, que dizia apenas.
          “Não deixe que a tempestade a faça se perder no mar de emoções tumultuadas de um homem difícil como eu, essa bússola a levará de volta para o lugar de onde nunca deveria ter saído, a minha vida. Te amo.“


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