___ Ande, meu bem, ou vamos nos
atrasar.
___ Já estou indo.
Carmem terminou de arrumar o coque no
alto da cabeça. Os cabelos um pouco grisalhos lhe conferiam um ar altivo,
soberano, maduro. A ideia de usar o colar de pérolas falsas no penteado fora de
Jurema, a empregada.
Estou
pronta, melhor ir ou Geraldo ficará irritado comigo.
___ Entre, meu bem, ou chegaremos
depois da noiva. __ disse o marido.
O casamento da sobrinha dele seria
realizado no próprio salão de festas, que por sinal, estava lindíssimo, todo
decorado com arranjos de lírios do campo, orquídeas, jasmins e, no meio de cada
arranjo, uma rosa vermelha, como sangue.
Carmem sempre apreciara flores, gostava
muito de ler sobre elas e seus significados. Ela sugeriu a Nathália, a noiva,
tal combinação.
Casamentos sempre a emocionavam,
lembrava-se da sua própria união, há trinta e dois anos. Ah, como ficara
nervosa! Recebera uma criação antiquada e rígida dos pais, casara-se virgem aos
vinte anos de idade, algo raro para os idos de 1970.
Um dia antes da cerimônia , a mãe
chamou-a para conversar e disse apenas.
___ Filha, não se preocupe! Vista sua
camisola, deite-se na cama e espere seu marido. Ele não irá demorar muito, logo
acabará.
___ Nossa, mãe, não foi isso o que ouvi
das minhas amigas!
___ Elas não sabem de nada, Carmem,
confie na sua mãe, sei do que estou falando.
Tensa, ela se recriminou por ter
permitido que sua vida tivesse sido tão marcada pela dominação dos pais.
A igreja em que se casou estava linda,
toda decorada com mimosas, lírios em tons avermelhados, com alguns ramos de
hera. Ela ouvira ou lera em algum lugar, já não se recordava claramente, que se
uma moça passasse por mimosas e não fosse mais virgem, as pequenas flores se
retrairiam, como se tivessem sido tocadas por algo mau.
O vestido era o tradicional, com muitas
rendas, sem decote algum, mas muito bonito.
Embora a mãe de Carmem tivesse se
esforçado para cuidar sozinha de tudo do casamento da filha, a jovem fez valer
sua vontade, ao menos em parte, seria responsabilidade dela a escolha das
flores. Os convidados foram surpreendidos com os arranjos das mesas: jasmim,
violetas, camélias e flores de maracujá, simbolizando graça, primeiro amor,
perfeição e fé.
No final da recepção, suas tias e a mãe
a beijaram e abraçaram com os olhos marejados de lágrimas. Por um momento ela
se sentiu uma menina de cinco anos e quis se prender aquele abraço e ficar ali.
___ Vamos meu bem, temos que ir. __
disse Geraldo gentilmente a puxando pelo braço.
A primeira noite do casal foi num hotel
elegante em Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro. Ele havia reservado uma
suíte para si, a fim de se arrumar ali e outra ao lado, para as núpcias.
Trêmula, ela permitiu que o marido lhe
ajudasse a abrir os botões do vestido. Ele achou melhor deixar que ela se
preparasse sozinha e foi para a própria suíte.
Carmem olhou melhor o quarto, apreciando a
decoração. Abriu a valise que carregara consigo, tirou de dentro a camisola
especial, presente de tia Lucinda, apreciando o contato suave da seda com sua
pele. Vestiu-se e se deitou na cama. A impressão que tinha era a de que estava
dentro de uma bolha de ar, não ouvia som algum, sentia apenas o imenso martelar
do coração em seu peito.
Uma leve batida na porta fez com que a
bolha estourasse. Geraldo entrou com pés macios. Ela sentiu o cheiro da colônia
pós barba que ele usava. O estômago pareceu revoltar-se naquele momento, todo o
seu corpo parecia estar agitado.
Oh,
Deus, como estou nervosa!
O marido não era tão puro e casto quanto ela,
percebeu seu nervosismo. Beijou-a de leve e contemplou-a.
___ Linda.
Levantou-lhe a camisola até a altura dos
quadris, retirou-lhe a calcinha e deixou-a ali, imóvel, com as pernas abertas.
Atrapalhou-se ao tirar as próprias roupas.
O peso do corpo dele era algo estranho para
ela. Já endurecido pela excitação, ele tomou impulso para frente e começou a
tentar ultrapassar a barreira aparentemente intransponível do hímen da mulher.
Carmem achou que iria desfalecer, a dor era lancinante. Ela não entendia porque
tinha de ser daquela maneira, sabia que sentiria um pouco de dor, mas não
tanta!
Finalmente algo pareceu se romper dentro
dela, dando passagem a ele em toda a sua força, em um vai e vem marcado.
Um urro e ele parou de se mexer.
___ Muito bom... querida... muito bom.
Pouco tempo depois e ele já estava
dormindo.
Carmem, sentindo as entranhas doloridas e a
alma pesada, foi se lavar. O choro veio manso, como o aumento das marés. No dia
seguinte, no outro e no outro, a mesma cena se repetia, tanto a do quarto como
a do banheiro, a única diferença era de que dessa vez o quarto era o da casa
onde iria viver e o banheiro também.
A moça resolveu procurar a mãe para
conversar, contou-lhe tudo, inclusive sobre a intimidade do casal.
___ Filha, foi exatamente como eu te disse
que seria. Esse choro vai passar quando vierem os filhos, aí sim, você terá com
o que se ocupar.
Mas os filhos não vieram.
Ela decidiu procurar um especialista, o
médico pediu vários exames.
___ E aí, doutor, já pode me dizer alguma
coisa?
___ O que eu posso dizer é que você é uma
mulher saudável, contigo não há problema algum. Traga o seu marido aqui, ele
deve se consultar também.
Depois de alguma insistência da esposa,
Geraldo resolveu marcar a consulta. O resultado dos exames dele não deixava dúvidas:
ele era estéril.
Carmem sentiu a garganta se fechar, as
lágrimas não demorariam a chegar. Ela não seria mãe, não sentiria um ser dentro
de si, não seguraria as pequenas mãozinhas com que tanto sonhara, não ouviria o
chorinho de seu bebê reclamando seus cuidados. Olhou o marido, tão consternado
quanto ela.
___ Amor, não fique assim. Eu te amo,
teremos sempre um ao outro. Isso não é o fim, ainda podemos ser pais, podemos
adotar.
___ Nunca, Carmem, nunca! Jamais vou criar
um filho que não seja meu.
___ Mas, Geraldo, tem tantas crianças
precisando de um lar, nós temos condições, podemos dar-lhe uma vida boa, mandar
para a escola...
___ Nunca, eu já disse! O assunto está
encerrado!
O médico ouvia a tudo impassível. A cena a
sua frente já fora vista por ele algumas vezes. Teve pena de Carmem, uma moça
jovem e bonita, com um marido tão mesquinho, mas, infelizmente, nada poderia
ser feito por eles, o caso de Geraldo era irreversível.
O silêncio marcou o casal por todo o dia e
por muito tempo ainda. Aos poucos o quadro foi mudando, Geraldo ia trabalhar e
Carmem o recebia com o melhor dos sorrisos à noite. Mas a dor dentro dela
persistia.
Por
que ele tem que ser tão inflexível? Essa casa é tão grande só para nós dois.
Sentindo a vida vazia, ela resolveu comunicar
ao marido sua vontade de trabalhar, falava fluentemente inglês, francês e
espanhol, não via motivos para ficar em casa sem fazer nada, poderia fazer um
curso de secretariado. Geraldo não foi contra a ideia, contanto que ela
estivesse em casa com o jantar pronto na hora em que ele chegasse, não haveria
problema.
O curso foi ótimo para ela e o trabalho não
demorou a aparecer.
Foi
bom ter estudado por tanto tempo, trabalhei, ganhei bem, pude me manter sem
ficar pedindo dinheiro ao Geraldo. Hoje as coisas são bem diferentes.
Ela pensou isso olhando Nathália. A moça
era médica, assim como o futuro marido, Bruno. Já moravam juntos havia algum
tempo, mas quiseram oficializar a união.
___ Meu irmão gastou um dinheiro com esse
casamento.
___ Ah, Geraldo, mas uma emoção como essa
não tem preço.
___ Meu bem, você não entende, isso acaba
em um dia! E eles já moravam juntos, não tinha necessidade disso.
Emocionados, os noivos disseram o tão
esperado “sim”.
Champanhe era a bebida favorita de Carmem,
que raramente bebia. Estava ainda saboreando a sua primeira taça, quando
Geraldo falou com ela.
___ meu bem, chame esse garçom, minha taça
está vazia e ele nem olha para cá.
___ Não acha que está bebendo muito rápido?
___ Pode me fazer esse favor?
___ Claro.
Ela fez sinal e um dos garçons se aproximou
e atendeu ao pedido de Geraldo.
___ Meu bem. __ começou ele.
Meu
bem... meu bem... meu bem... quando ele
parou de me chamar pelo nome?
___ Meu bem, reclame com o garçom! Quero
beber e ele não vem. vou ter que ficar chamando por ele toda hora?
___ Geraldo, qual o meu nome?
___ Heim? Que pergunta mais estranha!
___ Diga o meu nome!
___ Acho que quem está bebendo demais é
você. Chame logo o homem!
___ Não enquanto você não disser o meu
nome.
___Querida, pare com isso. Estou começando
a me aborrecer.
___ Querida, meu bem, diga de uma vez o meu
nome! Ou será que você não sabe?
___ Claro que eu sei.
___ Diga!
___ Carmem. Pronto, falei. Agora podemos
acabar logo com isso? Faça logo o que pedi.
Céus,
devo estar ficando louca, deve ter sido a bebida. Imagine se alguém escuta uma
discussão como essa! O que vão pensar?
___ Geraldo, vou tomar um ar lá fora.
___ Vai sim, porque você está precisando.
O corredor do salão era amplo, com um
enorme espelho. Carmem parou para se olhar.
Sempre
tive uma pele bonita, meu rosto quase não tem marcas. É, o tempo foi generoso
comigo. Meu manequim já não é o mesmo, mas não aumentei muito de tamanho. Sou o
que chamariam de uma coroa enxuta.
Ela sorriu para si mesma.
Quando
fora a última vez que eu e Geraldo fizemos amor? Amor? Será que alguma vez
fizemos amor? Ele sobe em cima de mim, faz o que quer e acabou. Não sei quando
foi a última vez. Ah, mas dizem que a libido diminui com a idade. Agora eu sei,
foi há... meu Deus... faz quase cinco meses que ele não me procura! E eu... é,
achei até bom. Que vida é essa que eu levo?
Um convidado passou por ela e a
cumprimentou com um aceno. Ainda de frente para o espelho, ela respondeu e seus
olhos se encontram. Algo naquele olhar deixou-a fascinada.
Não
é o que se poderia chamar de um homem bonito, mas os olhos... o olhar dele foi
tão... diferente.
O cérebro de Carmem trabalha ferozmente na
tentativa de responder a uma pergunta que ali se formulara:
Por
que estou tão agitada?
Um lampejo de esclarecimento começou a se
formar na sua mente.
Ele
me olhou com desejo!
Carmem já havia sido cortejada pelos homens
em vários momentos da sua vida, mas sempre teve o cuidado de não estimular esse
tipo de atitude.
Quantos
anos aquele homem deve ter? Não deve ser mais de quarenta. Imagine, olhar para
uma mulher como eu, que já passou dos cinquenta.
Não houve mágica, apenas lembranças. Carmem
lembrou-se novamente do dia de seu casamento, da noite de núpcias e dos anos
que se passaram. Ali, de frente para aquele espelho, toda a sua vida estava se
passando como um filme. Fascinada, ela chegou ao dia atual. O marido entediado
com a festa, que só queria saber de beber e sequer dissera como ela estava
bonita.
Quanto
tempo! Quanto tempo eu deixei que ele tomasse em suas mãos a minha história, a
minha vida, os meus sonhos. Abri mão da maternidade, poderíamos ter adotado uma
criança, eu seria mãe do mesmo jeito, mas ele não quis, poderíamos ter viajado,
mas ele disse que não gostava, poderíamos ter relações prazerosas, mas ele
estava mais preparado consigo.
Como
pude permitir que tudo isso acontecesse?
___ Carmem, tia Carmem, por favor, venha
até aqui. __ era a voz da noiva chamando por ela no microfone.
Carmem voltou para o salão apressada.
___ Tia, só tenho que agradecer a senhora e
a minha mãe pelos preparativos, por terem me ajudado. Vocês são mulheres
maravilhosas e espero que o meu casamento seja tão feliz quando os seus.
Os convidados aplaudiram entusiasmados o
discurso de Nathália, que entregou uma flor para cada uma das homenageadas: copos
de leite.
Copo
de leite é uma flor tão forte! Também o serei. Acho que me deixei levar por
tempo demais pela vida que o Geraldo quis viver. Pedirei a Deus para que o
casamento dessa menina não seja nem um pouco parecido com o meu.
Afetuosamente ela apertou a jovem contra si
e disse no ouvido dela.
___ Não faça do seu casamento igual ao de
ninguém, faça muito melhor, você merece.
De volta à mesa, Geraldo reclamou da sua
demora.
___ A menina teve que te chamar pelo
microfone, porque você não estava aqui.
Carmem fingiu não ouvir o que o marido
dizia, algo em sua mente era mais importante do que as reclamações dele.
Ao final, quando todos os convidados haviam
partido, Carmem e Geraldo se despediram dos pais da noiva e foram para casa.
___ Meu bem, pode ir se deitar, prefiro
tomar mais uma bebida, depois eu vou.
___ Carmem, me chame de Carmem.
___ Essa bobagem de novo!
___ Não é uma bobagem, é o meu nome. Está
na hora de eu voltar a ser apenas Carmem e não “o seu bem”.
___ Como é?
___ Geraldo, sinceramente, não aguento mais
essa vida com você. Eu quero o divórcio.
___ Ficou louca?
___ Não, agora é que estou sã. Não se
preocupe, você pode ficar dormindo na sala ou no quanto de hóspedes até que
tudo esteja acertado.
Carmem deixou-o sem palavras e foi para o
quarto, sorrindo, feliz, feliz como nunca foi em anos de casada.
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